Novela

Na Escuridão –– e um pouco de luz!
integra o romance Pedro em queda-livre


trecho:




     Novembro é o mês das flores, pensou ao entrar no cemitério. Logo se deparou com uma íngreme escadaria de mármore. Subiu a passo lento. No alto, a casamata. E dentro, apoiada num imenso fichário, uma freira com hábito branco espantava algumas moscas.
     –– Bom dia –– disse ele.
     –– Por que não boa tarde? –– disse a freira.
    Surpreso, olhou para a tira de céu às suas costas e teve a impressão de que eram dez horas de uma bela manhã de sol. Talvez já fosse pensar em algo, mas ela o interrompeu:
     –– O nome –– pediu.
  Apesar do esforço, nada lhe ocorreu. As consoantes e vogais agrupadas no cérebro não lhe sugeriam sequer um apelido. Atrapalhado, revistou os bolsos. Encontrou apenas um bilhete da Loteria Federal.
     –– O nome –– tornou a freira.
     Ele não sabia o que responder. Encarou o fichário: deve estar aí, em alguma gaveta. Num desses cartões sebosos, penou. Num tipo qualquer de máquina devia estar gravado o nome dele.
     –– O nome –– insistiu a freira.
     –– Não sei –– respondeu enfim.
     –– Como não sabe?
     –– Esqueci.
     A freira exasperou–se:
  –– E como posso ajudá-lo se você não é capaz de se lembrar do nome? Assim não é possível! –– e balançou a cabeça para os lados, descendo o olhar para as fichas no balcão.
  –– P-Perdi –– gaguejou ele erguendo os ombros, as palmas das mãos para cima. Em seguida, num tom de meia desculpa, assomou: –– Eu o tinha anotado num pedaço de papel, mas no caminho devo ter perdido.
     –– O quê?
     –– Como o quê? –– Ele imaginou uma falta de discernimento ou uma desatenção da parte dela. –– O nome, ora! Devo ter perdido em alguma parte a caminho daqui.
     A freira assumiu um tom didático:
     –– Não confunda as coisas, você perdeu foi o papel.
     –– Sim, mas no papel  estava...
    –– Correto! –– ajuntou a freira, despejando sua impaciência sobre os dois “rr". –– Mas isso agora não vem ao caso. O que importa é o nome, e você deve tê-lo em alguma parte da memória.  
     –– Mas já lhe disse que o esqueci.
     –– Pois então trate de lembrá-lo.
     –– Não consigo.
     Ela exasperou-se novamente:
     –– Isso é intolerável! –– Em seguida, com uma das fichas na mão, baixou o tom de voz: –– Perder o papel é um acidente, qualquer um pode cometê-lo. Mas esquecer-se do nome... Ah, isso é negligência, para não dizer uma fraqueza imperdoável –– arrematou soltando o corpo na cadeira à frente dos fichários.
     Ele puxou a franja do cabelo para trás:
     –– Tudo é possível.
   –– Muito vago –– tornou a freira reclinando o corpo para trás, a ficha agora entre os lábios. Em seguida, cruzou as mãos sobre o ventre e estirou as pernas até apoiar os calcanhares no cabo de uma marreta junto à parede.
     O perfil dela parecia-lhe um desdém.
     –– Perdi o nome... é só isso! –– disse taxativo.
    –– Você vai insistir no erro? –– A freira voltou-lhe o rosto, e apoiando o cotovelo no balcão, a ficha apontada para ele, continuou: –– Já lhe disse e repito: você perdeu o papel –– e jogou a ficha no tampo. –– O nome! o nome! o nome! –– dizia arregalando os olhos e elevando o tom de voz, o feixe de dedos semelhante a um botão de rosa balançando ao vento –– o nome, criaturinha, o nome você esqueceu!
     ––  Mas no papel  estava...
     Ela o interrompeu bruscamente.   
 –– Meu deus, não vamos voltar ao ponto inicial! –– Ato contínuo, recolheu os pés, girou a cadeira, apoiou o tronco sobre os cotovelos e inclinando-se para ele, assomou: –– Meu amigo, eu  preciso de nomes, trabalho em função deles. Há muitos anos que não faço outra coisa além de catalogar e dar baixa em nomes, compreende? Posso me considerar, sem falsa modéstia, talvez a melhor funcionária nesta função. Mas sem um nome o trabalho fica impossibilitado. De uma vez por todas:  sem isso –– e mostrou-lhe uma das fichas –– não há como ajudá-lo –– completou soltando mais uma vez o corpo na cadeira.
     Ele, incontinente, enfiou a mão no bolso da camisa e apanhou a carteira de identidade.
     –– Não! –– Ela, entesando mais uma vez o corpo e a voz, cortava seu gesto pelo meio: –– Não preciso de um nome qualquer, seria muito fácil arranjar um –– e bateu miudinho nas fichas espalhadas no balcão. –– Preciso de um único nome: o de quem você veio encontrar aqui. Todos –– ela agora estava mais calma –– vêm atrás de uma determinada pessoa, ou de um determinado corpo, se você prefere  Mas ao cruzarem o portão lá em baixo, se esquecem de tudo: família, amigos, amantes. De tudo isso lhes resta apenas um nome, e o trazem na ponta da língua, e decorado de tal modo que até na hora de cuspir são muito cuidadosos. Eu preciso desse nome, compreende? Tente lembrá-lo.
     Ele titubeou.
     ––  Não posso.
    –– Ah, não pode! –– disse ela com os lábios finos e agora espichados com visível satisfação. –– Então o que o impede de lembrá-lo? 
     –– Como assim? –– tartamudeou ele. –– Você me entendeu mal.
     –– Nada disso. ––  Ela balançava a cabeça para os lados. –– Se você não pode lembrar, amiguinho, é porque há um motivo muito sério por trás desse esquecimento.
     –– Mas lembrar é um ato involuntário. –– Onde ela queria chegar?
     –– Nem sempre! Pois saiba que às vezes, com um pouco de força, lembramos até do que não sabemos.
     Ele, abatido, olhou mais uma vez para o fichário: está aqui, ao alcance de minhas mãos, mas onde?
     A freira interrompeu seus devaneios.
     –– Enfim, chegamos a um bom termo. –– Foi a sua vez de ser taxativa: –– Você não sabe o nome!
     Ele assustou-se com a firmeza dela.
     –– Como não sei? Apenas esqueci –– disse confuso.
    –– Negativo, aspirante! Podemos nos esquecer daquilo que um dia soubemos, mas jamais do que não conhecemos. E isso não é motivo para nos envergonharmos, afinal acontece com todos nós. Uma só vida é muito pouco para tantas dúvidas , e no esquecimento, acredite, começamos sempre pelas certezas.    
     Ele enfureceu-se:
     –– Isso é um absurdo!
     –– Não saber o nome ou esquecê-lo?
     –– Esse jogo estúpido de palavras! –– gritou ele.
     –– Ledo engano, minha joia –– disse a freira com calma, uma ponta de sarcasmo na voz: –– Se você não sabe o nome, finja um. Todos ao entrarem aqui –– ela, enfiando as mãos nas axilas e empinando o corpo a partir das ancas, apoiou-se mais uma vez no balcão  –– não sabem o nome do que procuram, mas fingem um qualquer. A princípio eu pensava que eles sentiam prazer ao me enganar,  ou que queriam ocultar o nome por temor de alguma represália. Mas os anos mostraram o quanto eu estava enganada. O nome que eles me fornecem, e que já lhes vem na ponta da língua, não se assuste, é um nome falso. O mais impressionante, entretanto, é que todos acreditam nele. E como fingir, acabei percebendo, faz parte do jogo –– ela inclinou a cabeça para a direita e repuxou os cantos da boca para baixo e fez saltar para a frente o lábio inferior, de tal modo que ele não sabia se era um muxoxo ou um sorriso disfarçado –– eu também finjo-lhes um endereço. Eles não desconfiam de que sei de suas mentiras; de que sei da falsidade de cada um dos endereços que cuidadosamente lhes forneço. Só depois de muitas tentativas frustradas se dão conta de que  estava errado também o endereço. Então, voltam e me fingem outro nome, agora sem a convicção da primeira vez, humildes, pois já desconfiam que mergulharam num labirinto sem saída. –– A freira descruzou os braços e apoiou-os um sobre o outro no balcão. –– Alguns abandonam já na primeira tentativa; outros, mais persistentes ou orgulhosos, resistem durante um bom tempo, mas também se cansam e vão embora. E há aqueles que não desistem nunca, e já esquecidos do motivo original que os trouxera até aqui, acabam obstinados pelo próprio jogo. Frequentemente são encontrados agonizando entre uma galeria e outra. Desses, raros encontram o que procuram. Mas como seu método está baseado em tentativa e erro, já é tarde demais –– concluiu a freira, extenuada.
     Foi como se as sombras das galerias desabassem sobre seus ombros. Queria a saída para a sensação de impotência que já tomava conta da sua voz:
     –– Se me lembrar do nome não precisarei fingir um.
     O aborrecimento da freira era visível.
   –– Vamos ver se consigo ser definitiva –– disse ela sem conseguir nem mesmo afastar as moscas. –– O seu caso, além de comum, não é o bicho que parece. Você perdeu o papel, está claro, mas somente para justificar o fato de ter esquecido o nome. Na verdade, esse nome nunca esteve claro em sua mente, e o outro, o do papel, era talvez um apelido, um codinome. Um álibi. O impostor que por conveniência você esqueceu  A memória, em tais casos, é o recurso utilizado por todos para fingir, afetando dignidade no instante de acessar as galerias. O que ocorre com você, está visto, é uma sintomática falta de memória. –– Ela pensou um instante em silêncio, logo voltou: –– Talvez você a tenha perdido, sim, mas por conveniência. –– E descansou os cotovelos nos braços da cadeira.
     Talvez ela tivesse razão, pensou. Mas algo que parecia fora, que parecia maior do que ele, ou algo que estava de tal modo aderido à sua natureza que era impossível de reconhecer como não sendo ele mesmo, o impedia de lembrar o nome. Queria  lembrá-lo, sim, mas talvez ainda apenas como lembrança.
      –– Por conveniência, recobre sua memória –– disse a freira já visivelmente entediada, com a ficha outra vez na mão. –– Finja ao menos o nome do papel que eu também fingirei acreditar. No seu caso, é um ato de vontade, o único modo de seguir adiante. Do contrário, você fica impedido de entrar nas galerias para sempre –– e levantou-se em direção aos fichários.
     Foi como se ela tivesse jogado em seu rosto alguma coisa crua, ainda morna e pegajosa, feito as vísceras de um animal recém abatido. Tentou lembrar-se do papel, de seu colorido escuro, de seus traços em desalinho. Sentiu nos dedos apenas sua textura áspera, o seu tom violeta, como se esmagasse um punhado de pétalas.
     –– Para poder sair das galerias –– disse a freira, já de costas, debruçada de novo sobre os fichários –– é necessário antes penetrar fundo no seu interior. Está lá dentro o jeito de sair.

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