quinta-feira, 28 de novembro de 2013

“É preciso entender as redes e as ruas”

Publicado no Instituto Humanitas - UNISINOS - 27/11/2013
Fonte: Revista Fórum


Para Laymert Garcia dos Santos o conflito de classes, em escala global, começa a acontecer no meio digital. E parte da esquerda ainda não percebeu o potencial politizador que se encontra ali.

Segundo Laymert Garcia, “o caso Snowden é o
último elo de uma cadeia que vem vindo de várias outras que já entenderam o enorme potencial das redes, de politizar as questões simplesmente pela circulação dos fluxos de informação. Por quê? Porque se o Estado e o mercado podem saber tudo sobre a população, explorando isso do ponto de vista do controle, por outro lado os movimentos também podem.” A ponderação é de Laymert Garcia dos Santos, doutor em Ciências da Informação pela Universidade de Paris VII e professor titular do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, e remete à importância de se debater o funcionamento das redes e sua relação com as ruas, algo que veio à tona com as manifestações de junho no Brasil.

A entrevista é de Glauco Faria e Igor Carvalho e publicada pela Revista Fórum, 26-11-2013. Foto:Igor Carvalho.

Para Laymert, o advento do Wikileaks fez com que se prestasse mais atenção sobre quais informações as elites gostariam que não fossem reveladas. “O conflito de classes, em escala global, começa a acontecer nas redes, porque existe uma política de controle e hierarquização da informação nas redes, e, do outro lado, há gente trabalhando para a desobstrução dos canais”, afirma. “E isso é democracia, porque se você começa a fazer todo o fluxo de informação passar, as pessoas ficam sabendo o que os de cima não querem que elas saibam.”

Eis a entrevista.

Como o senhor enxergou as manifestações de junho, principalmente o envolvimento delas com as novas tecnologias?

As manifestações de junho foram uma grande surpresa para mim porque, pouco menos de um mês antes das manifestações, fiz uma palestra na PUC e introduzi dizendo que tenho 65 anos, mas gostaria de ter 30, porque achava que essa nova geração, no Brasil sobretudo, tinha uma oportunidade como nunca tivemos na história. O país entrou no mapa, aconteceu com a era Lula uma transformação social, com a inclusão de 40 milhões de pessoas, mas também por conta de uma política externa e cultural muito diferente do que tinha havido anteriomente. Isso abriu uma oportunidade nova de o país buscar o rumo que tinha tentado em 1964, mas, enfim, é a primeira vez que estávamos na cena mundialmente, e isso muda tudo.

Queria ter 30 anos hoje porque pela primeira vez não precisamos dizer “sim, senhor”, e isso dá para as novas gerações, e para o futuro, uma abertura inédita na história brasileira. Um pouco mais de um mês depois vieram as jornadas de junho, aí pensei: “Ou estou completamente fora de sintonia sobre o que está acontecendo, ou aquilo que estava dizendo continua valendo de alguma maneira, mas preciso entender o que é esse descontentamento e isso que está acontecendo nas ruas”.

Fiquei muito dividido quando as jornadas começaram. Embora entendesse completamente a posição do MPL[Movimento Passe Livre] e achasse que essas reivindicações todas que apareceram nas primeiras manifestações eram justas, por mais direitos, elas tinham uma coloração que me incomodava. E me incomodava porque não conseguia situar politicamente ali. Mas por que isso? Porque tinha a memória dos anos 1960. Como havia uma juventude tão descontente se existia, na história recente, uma transformação tão grande? E dava para perceber, na universidade mesmo, que a politização era muito baixa, via isso entre os jovens.

À medida que o tempo foi passando, como todo mundo, fui tentando entender o que estava acontecendo, mas sobretudo buscando compreender o papel das redes sociais. Comecei a achar que havia uma certa esquizofrenia no movimento, e essa esquizofrenia aparecia da seguinte maneira: eram reivindicações que, em geral, pertencem ao campo da esquerda, por mais democracia e direitos, portanto, no campo da esquerda, mas que quando chegava na hora das manifestações, as reivindicações eram verbalizadas com um tom que, no meu entender, era pautado pela mídia, em especial a questão da corrupção do modo como a mídia tinha trabalhado em demasia nos últimos anos.

Chamei de esquizofrênico por isso. De um lado, você tem as reivindicações de esquerda, por direitos, mas ao mesmo tempo com uma linguagem mista e que permitiu, inclusive, uma tentativa de recuperação das jornadas pela direita. Para mim, essa esquizofrenia se duplicava na relação entre novas tecnologias e velhas mídias, porque mostrava a permeabilidade dos jovens à mídia tradicional e à oposição programática que essa mídia tradicional tem com relação aos governos de esquerda. Ela [mídia tradicional] é francamente reacionária e francamente conservadora, considero que se trata praticamente um partido organizado. Por outro lado, há uma utilização das novas tecnologias de uma maneira muito contemporânea e de certo modo bem generosa, de esquerda, mas também misturada com essa coisa de redes sociais. Apesar de saber utilizar muito bem essa mídia para se mobilizar, a juventude não a usava para se informar.

Penso que essa perspectiva não esteja invalidada mesmo com o passar dos meses de julho e agosto, ainda que tenha surgido um fantasma de uma possível recuperação das ruas pela direita. Contudo, esse fantasma passou, e de certa maneira não colou, apesar de em algum momento ter havido uma dubiedade bastante grande que fez com que muita gente da esquerda se espantasse, sobretudo quem viveu 1964, aquela coisa de “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” etc. Um outro aspecto importante diz respeito ao envelhecimento do discurso politico tradicional e da própria mídia, apesar do efeito que causou sobre os manifestantes, em lidar com o assunto. O caráter jurássico da televisão e dos jornais para lidar e cobrir os assuntos ficou evidente. Isso foi um dos efeitos positivos dessa história, por exemplo, se a Globo tem que pedir desculpas, não importa se é hipócrita ou não, é porque alguma coisa aconteceu e arranhou a imagem dela.

Se a Globo começa a pensar que ela precisa ter o Fernando Meirelles para diretor-geral, é porque eles sentiram, com as jornadas de junho, que de repente a linguagem, o modo de abordar ficaram visivelmente superados, e para mim o ponto onde isso apareceu com mais vigor foi na incapacidade de sequer entender o que aqueles meninos do Mídia Ninja queriam dizer. Tentaram criminalizá-los, dizer que era uma mídia chapa-branca, que recebia verbas públicas… O que aconteceu de fato ali, que foi bem importante, é que as repostas deixavam claro que tinha uma outra lógica funcionando, inclusive de trabalho em rede, de cooperação e de colaboração, que escapava do esquema empresarial.

Um dos fatores importantes das jornadas é que houve um update da juventude em relação a uma série de questões, entre elas a redescoberta da rua, que depois vai aparecer nessa espécie de fragmentação de manifestações e reivindicações. Fragmentação que não acho ruim, pois é interessante que as pessoas saibam que elas podem – já podiam, mas não sabiam que podiam – se mobilizar. A questão da rua mudou, mas houve uma politização que começa a acontecer em relação aos próprios meios digitais. Se a passagem do Fora do Eixo para a Mídia Ninja acontece nesse momento não é por acaso; o que antes era uma prática cultural passa a ser uma prática cultural e política ao mesmo tempo, porque abrange uma compreensão sobre fazer política de um outro modo.

Essa questão não está ligada justamente a esse caráter esquizofrênico? Às vezes as pessoas foram lá pautadas pela mídia tradicional mesmo sem saber, e, quando aparece um microfone da Globo, rejeitam essa mesma mídia tradicional. Hoje, observamos que as coberturas ao vivo das manifestações são feitas de cima, de prédios ou helicópteros ou de jornalistas sem identificação, enquanto outras mídias estão no chão, em meio à multidão…
Por isso disse que era esquizofrênico. Por um lado, aquilo que era reivindicado era uma pauta de esquerda, mas a linguagem ainda estava ligada a uma cabeça permeável a essa mídia, e uma das coisas boas que aconteceu é que houve uma politização aí, com relação à própria mídia, e uma distância desse discurso que era um modo de expressão dominante, sobretudo da classe média. Tem várias nuances, quando falo das manifestações, me refiro às grandes que aconteceram nas cidades maiores, que pegavam uma faixa grande de classe média. Porque, desde o começo, se você observava o que se dizia na periferia é “aqui a bala não é de borracha”. Essa foi uma das primeiras coisas que apareceu em relação à repressão policial no centro, a crítica sobre o papel da polícia, o quanto a PM é uma herança da ditadura e a necessidade de se discutir essa questão e modificar a forma como é pensada a segurança…

Existe uma ruptura também no discurso da imprensa, que chegou a defender em editoriais a repressão e, quando seus repórteres foram atingidos pela polícia, passaram a adotar outra postura.

Foi aí que se tornou impossível a repressão das manifestações. Enquanto você está fazendo isso na periferia, tudo bem, não pode fazer onde estão os “nossos filhos”… É como já se disse em relação ao nazismo, enquanto solução de extermínio, genocídio, era feita nas colônias, tudo bem, mas fazer isso no coração da Europa não dá. A lógica é a mesma.

No debate que o senhor participou na USP o senhor falou sobre “vandalismo seletivo”…

Houve num certo momento uma tentativa de se fazer uma distinção os manifestantes, havia os “palatáveis”, como aquele que se enrola na bandeira e a Veja vai fotografar como se fossem os verdadeiros manifestantes porque estão lutando contra a corrupção, tentando fazer colar no governo do PT o carimbo da corrupção, uma questão classe média. Do ponto de vista conservador havia essa distinção, de um lado, há o bom manifestante; do outro, o mau, que é o vândalo, indistinto, é todo mundo que quebra alguma coisa. Conversando com gente que conhece a periferia, os manifestantes que vinham de lá, percebi que havia uma diferença entre os chamados “violentos”, e que não era possível colocar todos no mesmo bloco. Havia agentes provocadores que entravam nas manifestações e que procuravam atingir as instituições, mas com quebradeiras indiscriminadas, e aqueles que chamei de ”destruidores seletivos”, que queriam atingir os símbolos do capital, não estavam atacando qualquer coisa, mas visavam agências de automóvel, bancos e alguns símbolos do capital global, retomando um pouco o que acontece desde Seattle [em 1999].

Nas primeiras edições do Fórum Social Mundial, não era incomum ver a polícia protegendo o McDonald’s, ou seja, protegendo o patrimônio.

A questão do patrimônio… Lembro que um dos grandes “escândalos” em uma das primeiras manifestações foi o ataque a uma agência de automóveis, no mesmo dia em que houve uma intervenção militar na Maré, em que morreram nove pessoas. E o escarcéu foi em torno da agência de automóveis. Se tem, por um lado, uma espécie de violência seletiva, por outro tem de ser sempre lembrado que a questão do patrimônio é mais sacrossanta na visão da mídia tradicional e dos conservadores, e a vida das pessoas, não. Na Maré, ninguém levantou o dedo para apontar que havia ocorrido um verdadeiro massacre.

São essas nuances que é preciso observar para não condenar a violência em bloco, porque existe um certo tipo de violência compreensível e talvez até defensável. Entendo perfeitamente porque ouvi relatos de pessoas que conheciam jovens de periferia que participaram de algumas das ações de violência e que estavam dando o troco por aquilo que recebem todo dia na periferia. Quando existe um momento em que se pode revidar no centro da cidade, entendo, porque sabemos como a periferia é tratada por governos como o do Alckmin, em São Paulo, ou no Rio de Janeiro. A gente sabe como é.

A questão da segurança precisa ser rediscutida, e por isso gostei da capa da Fórum [125] que dizia: “Polícia não pode ser militar”, fazendo uma dissociação que é fundamental. Muito das outras impunidades são herança de uma impunidade na qual existe uma categoria de cidadãos que está acima da lei, e não é só o agente do grande capital, mas está representada no exercício da violência aberta contra a população.

Enquanto não houver uma discussão de fundo sobre a violência que é exercida contra os índios, desde 1500, um genocídio… Tem de colocar esse pacote em cima da mesa, assim como o pacote da Lei de Anistia, é necessário responsabilizar aqueles que na ditadura torturaram, essas pessoas têm de ser punidas. É preciso colocar a questão da segurança mostrando que a polícia não pode tudo, porque também tem de obedecer à lei. Enquanto não acabar essa impunidade, acho difícil que as outras impunidades acabem, porque já se estabelece que há gente que está acima da lei e gente que tem de obedecê-la. Não é possível dizer que se está em uma democracia política, e não estou nem falando social e econômica.

Ou seja, essa seria talvez uma das principais questões a ser tratada, também decorrente das manifestações, começarmos a remover esse entulho autoritário?
Sim, temos de começar a remover esse entulho autoritário, para além das reivindicações específicas. Essa é uma questão de fundo, e temos de levar até o fim o tema da segurança, o genocídio contra os índios… E a outra questão é a das mídias, da mídia velha que ficou patente, e isso é patente, e a relação da juventude com as novas tecnologias. Isso precisa ser trabalhado.

Os manifestantes não aceitam, por exemplo, a Rede Globo nas manifestações, mas os marcos regulatórios das comunicações e da internet ainda não se tornaram bandeiras ativas nas ruas.
Quando comecei a ver algumas manifestações de “Fora Globo” e depois, ainda, manifestações na frente da emissora, paralelamente corria o caso do [Edward] Snowden. No início as questões estavam totalmente dissociadas e depois se juntaram, comecei a prestar mais atenção nele do que no outro pedaço, porque percebi que aquilo era histórico. Quando começaram as manifestações na porta da Globo, comentei aqui em casa: Será que não era mais importante haver manifestações pelo marco regulatório? Será que é mais importante atacar a mídia velha ou já assumir a discussão da regulação das novas mídias, porque é com elas que está o futuro, não está com a imprensa escrita e nem mesmo com a televisão. Será que não é na questão das redes que estaria a questão principal e a briga do marco regulatório? Até porque existem setores do governo que são bastante permeáveis aos interesses das teles, da televisão tradicional, que estão, inclusive, emperrando no Congresso a votação dessa lei.

Existe em vários setores do governo…

Claro. Mas parecia que ainda não era pauta, e de certo modo ainda não se tornou uma pauta política dos jovens, e aquele momento era muito importante para se tornar uma pauta dos jovens, porque juntou tudo quando as revelações do Snowden chegaram aqui, e principalmente quando a presidenta da República tem sua comunicação espionada. Não dá mais para invocar a explicação que eles deram, de que o motivo da bisbilhotagem era só por razões de terrorismo. Torna-se absolutamente necessário um marco que regule a internet, que seja pela proteção da privacidade e que possa se estabelecer uma política digital, necessária até por questões de soberania.

Por outro lado, é preciso que haja uma pressão da sociedade civil e sobretudo dos jovens no sentindo de entender que a questão da defesa da privacidade é política, e é extremamente importante não para você colocar sua fofoca em dia pelo Facebook, o que precisa se defender é uma outra lógica de operação em rede. Essa lógica, de certa maneira, já vem sendo trabalhada no Brasil desde o começo do governo Lula, o Ministério da Cultura do Gil tinha uma estratégia em relação a isso, unir diversidade cultural e cultura digital. Por que isso?

Justamente por ser potência com potência. Potência das novas tecnologias com uma potência de uma cultura popular forte que existe no Brasil, mas que não encontra canal, porque os canais estão estrangulados e dominados por uma produção cultural que não é feita para a população. Ou ela é feita para a elite ou é feita com o objetivo de massa e de indústria cultural, de exploração comercial. Mas a riqueza da cultura popular não é engatada positivamente de tal maneira que possa se desenvolver e criar condições não só para a ampliação, inclusão cultural, mas para que esses jovens possam encontrar uma inserção social através da produção de cultura. O Gil viu isso muito claramente e fez disso uma estratégia, reconhecida internacionalmente, porque nós éramos um dos países que estavam na ponta na relação entre cultura e tecnologia, e na ponta do entendimento da possibilidade que o digital traz, inclusive na política, trabalhando na lógica cooperativa, daquilo que escapa da propriedade intelectual, do software livre, do Commons.

Não é por acaso que o sujeito que inventou o “www” [Tim Berners-Lee] disse que o marco regulatório brasileiro, se aprovado, será o mais avançado do mundo na questão da proteção das liberdades individuais. Por que ele é o mais avançado? Justamente porque já tem um caldo cultural, conversei com alguns desses grandes advogados americanos que trabalham na questão do Creative Commons, do software livre, e eles achavam que tem uma política de ponta no Brasil, uma elaboração feita… Depois que entrou o governo Dilma, isso deu uma arrefecida, veio a Ana de Hollanda [ex-ministra da Cultura], que foi um retrocesso e ainda estamos em processo de retomada. Dá para entender o que eu digo?

Agora, com o fato de os americanos terem feito o que fizeram [espionagem na NSA], temos uma oportunidade de ter uma política de Estado que é crucial, porque é o futuro. A questão do digital é o futuro, não tem volta. Se não estivermos preparados para isso, não estamos preparados para essa autonomia que estamos começando a desenhar, que começou há dez anos, em 2003, e é nessa autonomia relativa que temos de navegar. E pude perceber porque acompanhei de perto, nas ações do Ministério da Cultura, que existia uma sintonia forte entre a nova diplomacia brasileira e o que era a visão estratégica de cultura do Gil. Um entendimento forte em relação a qual era o papel do Brasil na América Latina, seu papel no mundo, que diferença poderíamos fazer, já existe um pensamento no Brasil, uma prática e um conhecimento acumulado que permite que isso tenha vazão, e essa luta da cultura e da tecnologia precisa ser reconhecida como pauta mesmo.

Dentro dessa sua ideia de entender o digital como o futuro e remetendo um pouco às manifestações. Nós tínhamos esse setor do Gil, com o Juca Ferreira, no governo Lula, que tinha esse entendimento muito claro do papel da tecnologia aliada à cultura. Mas as manifestações também não mostraram para certos setores que estão analógicos demais? Ou seja, nossos partidos de esquerda, muitos sindicatos e movimentos sociais não tratam desse tema ainda.

Concordo plenamente com a análise que você faz, tem uma questão que para mim é complicada, a incapacidade que governos do PT tiveram em lidar com a questão da mídia. De certo modo, ela permaneceu intocada, até quando houve momentos em que alguma coisa de mais forte poderia ter sido feito, quando a Globo fez uma aposta errada no mercado financeiro e entrou em uma situação de crise. Ali havia um flanco aberto, mas o governo Lula foi lá e bancou, sem colocar condições.

Isso continua até hoje. Em parte, isso se deve ao fato de a esquerda brasileira nunca ter feito a crítica de fundo da mídia. E nem da tecnologia. A posição de esquerda de partidos, sindicatos etc. é de que os meios são neutros e tudo depende de quem se apropria dessa técnica e, portanto, quando chegar o momento de a esquerda estar no poder, se faz uma inversão de signos. Isso é o máximo que a esquerda pensou sobre essa questão, e há muitos anos venho pensando e batalhando por um outro entendimento, porque não é possível você considerar a tecnologia como algo meramente instrumental, quando ela modifica completamente todos os tipos de relação. A tecnologia, sobretudo depois da virada cibernética, mudou a vida, o trabalho e a linguagem. Ou seja, mudaram as relações. Nessas condições, se você não fizer uma crítica de fundo, vai acabar fazendo aquilo que critica em seu adversário, vai fazer isso achando que colocou um conteúdo de esquerda, mas as práticas serão as mesmas. Assim, vai ser tão manipulatório e antidemocrático quanto antes e, de certo modo, desconhecendo o próprio potencial que a tecnologia traz.

Por exemplo, voltando um pouco, há uma questão que me espantou, que mostra como se pode ao mesmo tempo estar no jogo não sabendo que se está no jogo. Nas grandes manifestações, em junho, todo mundo se volta para o Estado para ver qual será a reação deste Estado. A Dilma vai para a televisão e faz uma proposta de uma Assembleia Constituinte específica para a reforma política. Ela deu uma resposta política que era absolutamente crucial, porque respondeu a uma demanda de poder dos movimentos nas ruas, com algo que ampliava a participação em poder, já não seria o Congresso o ator principal dessa operação. E foi interessantíssimo, bastante elucidativo, porque, ao fazer essa proposta, os conservadores e a classe política inteira se mobilizaram para boicotá-la, primeiro para transformá-la em um plebiscito para que nada acontecesse. Esses setores estão no seu papel, quem não está em seu papel são os manifestantes, que pediam mais poder e, quando você tem a autoridade máxima do Estado acenando e dizendo: “Vamos nessa?”, o outro lado não responde.

Não houve manifestações para isso e nem um entendimento sobre o que significava esse gesto. Ouvi gente dizendo: “Ah, mas era um cálculo político”. Não importa. As ruas emitiram um sinal, e a Dilma emitiu um outro sinal em resposta num sentido de ampliação da democracia como nunca havia acontecido. Os setores da direita imediatamente souberam ler o que estava em jogo, e os manifestantes não souberam. Por quê? Despolitização? Não souberam avaliar? O que aconteceu? Isso me fez pensar que as reivindicações do movimento são restritas, de certa maneira têm um certo fôlego, que não é muito grande, e sendo atendidas algumas reivindicações, você consegue esvaziar. De qualquer maneira, se perdeu uma oportunidade naquele momento, havia uma abertura para uma potência, que não se concretizou.

Para mim, essa perda de oportunidade diz muito sobre a leitura de campos de forças e do entendimento sobre o que é este jogo de forças. Em relação às novas tecnologias, para o PT, para os sindicatos e movimentos sociais, ainda não caiu a ficha da sua importância e que isso pode ser trabalhado de uma outra lógica, colocando em xeque políticas de controle global. O caso Snowden é o último elo de uma cadeia que vem vindo de várias outras que já entenderam o enorme potencial das redes, de politizar as questões simplesmente pela circulação dos fluxos de informação. Por quê? Porque se o Estado e o mercado podem saber tudo sobre a população, explorando isso do ponto de vista do controle, por outro lado os movimentos também podem, e isso o Wikileaks começou a fazer, a prestar atenção sobre quais informações os super-ricos querem suprimir.

O conflito de classes, em escala global, começa a acontecer nas redes, porque existe uma política de controle e hierarquização da informação nas redes, e, do outro lado, há gente trabalhando para a desobstrução dos canais. E isso é democracia, porque se você começa a fazer todo o fluxo de informação passar, as pessoas ficam sabendo o que os de cima não querem que elas saibam. É o que está acontecendo com o Snowden de novo. Isso a própria tecnologia permite como a lógica de funcionamento em rede auxilia na distribuição da informação. O que as pessoas não entendem de jeito nenhum é que a informação é a diferença que faz a diferença, e também é o valor do capitalismo contemporâneo.

Quando a informação se tornou valor, e isso começou na década de 1970, a questão se colocou: “Como ganhar dinheiro com a informação?”. Porque a informação não tinha preço. Foi reelaborada e inventada uma coisa que se chama direito de propriedade intelectual, que não é só uma extensão do direito autoral e do direito de invenção da propriedade industrial, é muito mais do que isso. É o que alguns especialistas chamam de “a última enclosure”, o último cercado que começou na Inglaterra com o começo do capitalismo, quando se cercou a terra.

Agora vamos criar um que vai cercar essa unidade mínima que é a diferença que faz a diferença, para garantir a exploração desse valor como unidade mínima, e, ao mesmo tempo, com um alcance global. A lógica das redes, de seu funcionamento e aperfeiçoamento, é colaborativa, e, sendo colaborativa, ela escapa, é da sua própria lógica que as informações circulem. Se não circulam é porque começam a colocar gargalos para cercar e fazer a captura dentro do sistema que permite que isso vire uma propriedade. A esquerda ainda não entendeu o alcance que isso tem como luta política. Se pegarmos, por exemplo, esse sistema anglo-americano de espionagem, porque são americanos, mas os ingleses estão acoplados, como eles chamam as primeiras operações por meio desses sistemas? Vão dar os nomes das primeiras batalhas imperialistas, tanto dos EUA quanto da Inglaterra. Por quê? Porque começou, em outro plano, um outro tipo de imperialismo, e se você não estiver preparado para lutar neste outro plano, como vai perceber o que está em jogo? Existe uma guerra, hoje, no mundo digital, mas é real também porque a dimensão virtual da realidade é tão real quanto a física. Mas a ficha ainda não caiu que esse conflito está lá, e é claro que isso precisa ser entendido, se tornar uma questão política de ponta. Ainda não vi as pessoas se mobilizando para defender o marco regulatório da internet; inclusive, se a gente fizer isso, ou vier a fazer num futuro próximo, vamos ser modelo para outros países que estão com o mesmo problema. Mas precisamos fazer.

Não se faz democracia sem informação, e a maneira de fazer democracia atualmente é expondo, para os ricos, aquilo que eles fazem para o resto da população. Se eles podem fazer tudo e levantar tudo sobre a população, e estão o tempo inteiro se protegendo e protegendo essa informação, sobretudo para destruir aquilo que não deve ser conhecido, os caras que aparecem, de certa maneira, e levantam esse movimento, mostram como essa lógica de captura funciona, estão trabalhando para uma desobstrução de canais, algo absolutamente fundamental. Só pela desobstrução de canais e por uma luta entendendo o que é a propriedade intelectual e o que é fechar a informação para uma apropriação é que você vai poder lutar no futuro, porque não se pode mais voltar para trás. Quando se observa a geração de agora, de 20 anos, eles não conseguem nem lembrar, aliás, nem conseguem saber o que é o mundo sem internet. Nós também não. Algum de nós consegue viver sem internet? Claro que não.

Esse campo, esse fluxo das redes, já se constituiu num campo de batalha para as grandes potências, para o grande capital também, mas muita gente, inclusive da esquerda, ainda não captou isso. A gente pode dizer hoje que as redes e as novas tecnologias são essa nova expressão da luta de classes, só que ninguém enxergou ainda?

Não é que há um determinismo tecnológico, não é essa a questão, se essas máquinas existem é porque as forças produtivas se desenvolveram a ponto de criar essas máquinas. Mas elas colocam a luta política em outro patamar, e esse outro patamar não pode mais deixar de ser levado em conta porque a luta vai se passar lá. Não só lá, mas não é possível entender as ruas hoje, no Brasil e em outros países, sem entender o binômio redes e ruas, com suas especificidades. O modo como o movimento se dá nas redes não é exatamente o mesmo que se dá nas ruas, a relação rede-rua é que tem de ser pensada junto, na sua articulação, e isso é política. Chamo isso de tecnopolítica porque não é mais possível pensar a política sem a tecnologia junto. Estamos vendo agora na política internacional, em que se discute aquilo que se passa nas redes.

Mas ela ainda é excludente…

Claro que é excludente, e se você quiser expandir a democracia política no país, tem de ter banda larga pra todo mundo e com preço acessível, mas tem de ser uma política de Estado. Já devia haver uma diretriz nesse sentido, porque o acesso às comunicações no Brasil é muito caro, não só a banda larga como a telefonia celular é extremamente cara para uma qualidade ruim, a relação qualidade-preço é absurda, e isso revela que existe muito caminho para ser trilhado aqui. É preciso garantir o acesso para a população, mas também trabalhar a educação digital dessas pessoas, e acho que foi isso que o Gil sacou, que podia fazer uma relação entre riqueza cultural e um povo sem acesso. O mais importante é abrir canais novos, e o potencial que a pessoa tem na periferia encontra uma maneira de realizar aquilo, não se torna só um consumidor de uma cultura que vem de cima para baixo. É uma diferença enorme. E até a dependência em relação à mídia velha vai sendo cada vez menor.

Em relação à educação, existe também a questão do trabalho imaterial, que começa a ganhar importância; não sei se é possível isolar, mas como isso modifica a luta dos trabalhadores, dos sindicatos e como entra a questão educacional nesse sentido?

A virada cibernética começou nos anos 1950 nos laboratórios, e nos anos 1970, as máquinas inteligentes começaram a entrar, com os computadores pessoais, em todos os setores, na vida social, na produção, em tudo. Houve uma alteração que é crescente, e cada vez mais profunda, da vida e do trabalho das pessoas, afetou o modo como se trabalhava, instaurando o que muitos chamam, inclusive, de crise da sociedade de trabalho. Porque as máquinas começaram a substituir não só a força física, como era no século XIX, com as máquinas a vapor substituindo quem fazia a força motora, mas passou a fazer todo tipo de trabalho que não é o de invenção, que a máquina não é capaz de criar ela própria. Fora esse trabalho, a substituição do trabalhador pela máquina é cada vez maior, tanto que vemos, desde que isso começou, um paradoxo enorme no qual todos os governos do mundo dizem que precisam aumentar o nível de emprego, e fomentam políticas que substituem os humanos pelas máquinas. Você diz o tempo todo que vai lutar pelo aumento do emprego e, ao mesmo tempo, implanta uma política que elimina o trabalhador e põe uma máquina no lugar dele.

Claro que não é culpa das máquinas, e sim das relações sociais, pois se elas ocupam o lugar dos humanos, eles poderiam ser liberados e preparados para fazer o trabalho que elas não podem fazer. Mas esse desenvolvimento é usado contra o trabalhador, fazendo com que antes ele fizesse uma greve por melhores condições de trabalho e depois da era cibernética, que ele pedisse pelo amor de Deus pra trabalhar. Essa mudança é o que os especialistas chamam de crise da sociedade do trabalho. Hoje a precarização é tal que você luta para manter o seu trabalho. Ao mesmo tempo, essa nova situação cria condições para que outro tipo de trabalho possa acontecer, de caráter colaborativo, escapando dessa lógica.

É necessário que os sindicatos, os trabalhadores discutam isso, quais são as positividades que podem ajudar para não transformar isso em um ludismo, uma briga contra a máquina. Por outro lado, tem de haver uma educação que já integre essa frente de transformação digital porque o mundo se transformou em algo no qual a dimensão digital é incontornável, e é preciso que a população seja educada pra isso. Qual o problema principal depois que você consegue o acesso? É que é necessário ter uma educação para que, dentro daquele fluxo gigantesco de informações, você possa ter parâmetros para discriminar a informação que vai ser boa para você. Não é só o acesso físico, se não tiver critério para se politizar dentro disso, por exemplo, você vai usar a máquina como uma televisão. Usa 1% dela, e no que ela tem de pior.








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terça-feira, 26 de novembro de 2013

A crítica à agroecologia de Zander Navarro e seu “autismo científico”



da página do MST - 18 de novembro de 2013


Em recente artigo publicado no O Estado de S. Paulo, o sociólogo e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Zander Navarro, escreveu o texto intitulado Fadas, duendes e agricultura, em que deslegitimava o modelo de produção agrícola baseado na agroecologia.

Nele, Navarro critica o recém lançado Plano Nacional de Agroecologia e Agricultura Orgânica, do governo federal, chamando-o de fictício, ridículo, absurdo e algo inacreditável e espantoso.

Em resposta a Zander Navarro, José de Souza Silva, Ph.D. em Sociologia da Ciência e Tecnologia, rebate os argumentos do sociólogo a mercê do agronegócio, a quem considera “autismo científico”.

Para José de Souza Silva, Navarro afirma que o desempenho produtivo da agricultura brasileira produz sustentabilidade, quando o modo capitalista global de produção e consumo replicado pelo agronegócio é a causa profunda da vulnerabilidade do Planeta.

Em contrapartida, ao propor “o cultivo das relações, significados e práticas que geram, sustentam e dão sentido à vida humana e não humana, a agroecologia é um obstáculo à acumulação infinita num planeta finito. Por isso Zander é tão agressivo em sua defesa implícita do agronegocio; a agroecologia é o ‘novo inimigo a combater’”.

Confira o artigo.


A hybris do ‘ponto zero’ e o ‘autismo científico’

Por José de Souza Silva


Poderia ser o “dia da arrogância científica”, mas este foi apropriado por Zander Navarro com Fadas, duendes e agricultura publicado no Estado de São Paulo (30/10). Melhor designá-lo como o dia do ‘autismo científico’.

O autismo é um transtorno global do desenvolvimento que ocorre na infância e institui um mundo particular para alguém que passa a operar dentro de seus limites. O caso desse autor revela um novo tipo de autismo, o ‘autismo científico’. Este é um transtorno no sistema de verdades, sobre o que é e como funciona a realidade, que ocorre entre cientistas durante sua (de)formação profissional.

Cientistas afetados vivem num mundo especial e não operam fora dele. O fenômeno pode ser entendido a partir do significado da hybris (ou hubrys) do ‘ponto zero’. O filósofo colombiano Santiago Castro-Gómez explica que a ideia de ciência moderna supõe um conhecimento que nega seu lugar de enunciação para legitimar sua neutralidade e universalidade. Mas é essa pretensão de autoridade absoluta que constitui a mais radical das posições políticas.

A aspiração de universalidade nega outras formas de conhecer e intervir e transforma o detentor da razão e da verdade no legítimo porta voz de todos. A hybris é a prepotência do ‘ponto zero’ (não-lugar), a arrogância de quem nega seus interesses humanos, posição política e subjetividade para falar em nome de todos.

Zander vive no ‘ponto zero’. Isso o autoriza a definir quem pode ou não enunciar certas verdades, discernir entre o certo e o errado, distinguir o falso do verdadeiro e separar o joio do trigo. Ele vive na Casa de Salomão que Bacon propôs em Nova Atlântida, a ciência organizada que cria as verdades com as quais o Estado governaria a sociedade.

Furioso com o governo federal, por lançar o Plano Nacional de Agroecologia e Agricultura Orgânica sem visitar a Casa de Salomão nem consultar os semideuses habitantes do ‘ponto

zero’, o autor condena o “fictício” conteúdo da proposta, a “ridícula” iniciativa do governo, o “inacreditável” edital do CNPq para fomentar a misteriosa agroecologia, os “espantosos” R$ 98,3 milhões do MDA para ampliar os processos de agroecologia já existentes, os “militantes” que organizaram esse assalto à razão e os “ideólogos” que enquadraram o Planalto em algo tão “absurdo”. Todos estão errados; só ele está certo. A elite científica da Casa de Salomão não autorizou o Plano.

Esquecendo que um cientista atua sob a autoridade do argumento e não sob o argumento da autoridade, o autor perde a razão e faz afirmações autoritárias que o colocam na situação frágil que ele só percebe naqueles que critica.

Condena o Plano por não definir agroecologia, sem definir o que é ciência ao acusar a agroecologia de não ser uma ciência; critica a complexidade dos sistemas agrícolas e defende a uniformidade da produção moderna (mono-cultivos), sem informar que, na natureza, a uniformidade significa vulnerabilidade; afirma que o desempenho produtivo da agricultura brasileira produz sustentabilidade, quando o modo capitalista global de produção e consumo replicado pelo agronegócio é a causa profunda da vulnerabilidade do Planeta.

A tarefa secreta cumprida pelo artigo foi realizada com a maestria de quem domina a arte do “jogo sujo das sombras” que o autor condena em seu artigo. Usa a estratégia do Papa
Leão XIII no texto da Rerum Novarum publicada em 1891. Nela, o Papa faz uma defesa do capitalismo, sem falar seu nome, ao defender a propriedade privada como um “direito natural”. Zander também defende o capitalismo, sem falar nele, ao condenar os agroecologistas como anticapitalistas. Esta é a “agenda oculta” de um guardião do capitalismo.


Propondo o cultivo das relações, significados e práticas que geram, sustentam e dão sentido à vida humana e não humana, a agroecologia é um obstáculo à acumulação infinita num planeta finito. Por isso Zander é tão agressivo em sua defesa implícita do agronegocio; a agroecologia é o “novo inimigo a combater”.

Curiosamente, Zander não informa que hoje o saber científico continua imprescindível, mas é apenas um entre outros saberes relevantes e que, dentro da ciência, não existe apenas uma forma de fazer ciência, a positivista prenhe do gene do autismo científico.

Emergem outras opções paradigmáticas, como o neo-racionalismo, neo-evolucionismo e construtivismo.
paradigma positivista perdeu seu monopólio; sua contribuição continua imprescindível, mas restrita aos fenômenos físicos, químicos e biológicos cuja natureza e dinâmica não dependem da percepção humana.

Vinculada à mudança conceitual no processo de inovação, a agroecologia emerge com o construtivismo percebendo a realidade como uma trama de relações, significados e práticas entre todas as formas e modos de vida. Para Zander, o mundo é um mercado onde a existência é uma luta pela sobrevivência através da competição. Salve-se o mais competitivo!

A Casa de Salomão cultiva uma ciência para a sociedade, mas não da sociedade. A ciência praticada aí, que já foi imperial, colonial e nacional, é agora uma ciência comercial comprometida com a sustentabilidade da acumulação capitalista e não com a sustentabilidade dos modos de vida.


Na Casa de Salomão onde reside Zander, o que não emana do mercado não serve ao mercado e não pode ser traduzido à linguagem do mercado, não existe, não é verdade ou não é relevante. Até quando? A que custo?



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segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Organizações pedem intervenção federal em MS para resolver conflitos em Terras Indígenas

Carta Aberta à Presidenta Dilma Rousseff sobre as ameaças e ataques de ruralistas contra povos indígenas: Intervenção federal no Mato Grosso do Sul já
Fonte: ISA (Instituto Socioambiental)



À Presidenta Dilma Rousseff

Desde a morte de Oziel Terena, assassinado por forças policiais durante o cumprimento de uma reintegração de posse na terra indígena Buriti em maio deste ano, uma série de acontecimentos tem colocado em risco a segurança e a vida das comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul. Em sua guerra particular contra os povos indígenas, fazendeiros tem se manifestado de forma cada vez mais agressiva no discurso e na ação contra estes povos.

Estimulado por declarações violentas e preconceituosas de fazendeiros e seus representantes no Mato Grosso do Sul, o conflito chega a um estado de recrudescimento que exige de nós, organizações indígenas e indigenistas, vir a público mais uma vez denunciar a situação urgente e gravíssima dos povos originários do estado, e exigir uma intervenção federal imediata no Mato Grosso do Sul, de modo a evitar mais uma tragédia anunciada no Brasil.

Em Campo Grande, durante a invasão da sede da Fundação Nacional do Índio por 150 produtores rurais, no dia 19 de novembro, uma fazendeira gritou, dirigindo-se a indígenas que estavam no local: "o dia 30 está chegando (...), e rogo uma praga a vocês: morram. Morram todos!". Foi aplaudida pelos manifestantes.

Dia 30 de novembro foi o prazo final estabelecido pelos produtores rurais do Mato Grosso do Sul para que o governo solucione os conflitos fundiários no estado. No entanto, prevendo que o Estado não consiga apresentar uma proposta que efetivamente dê cabo do problema - e que favoreça o segmento do agronegócio - os fazendeiros, através de suas associações, tem pública e repetidamente dado declarações como esta.

"O prazo para uma solução final é 30 de novembro. Depois disso, como já é tragédia anunciada, os fazendeiros irão partir para o confronto legítimo para defender seu direito de propriedade. E vai haver derramamento de sangue, infelizmente", declarou o vice-presidente da Associação dos Criadores de Mato Grosso do Sul (Acrissul), Jonatan Pereira Barbosa, na tribuna da Comissão de Reforma Agrária do Senado Federal, no dia primeiro de novembro, conforme publicado no sítio eletrônico da entidade (veja aqui).

O presidente da Acrissul, Francisco Maia, no último dia 8, em reunião com 50 produtores rurais do estado, disse: “A Constituição garante que é direito do cidadão defender seu patrimônio, sua vida. Guarda, segurança, custa dinheiro. Para entrarmos numa batalha precisamos de recurso. Imagine se precisamos da força de 300 homens, precisamos de recurso para mobilização” (saiba mais).

Em nova reunião, no dia 12 de novembro, o vice-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), Nilton Pickler, também veio à público corroborar a posição da Acrissul: “Estamos em uma terra sem lei, onde invadir propriedade não é mais crime, alguma reação precisa ser feita”, afirmou.

As entidades representativas dos produtores rurais do estado estão organizando, para o dia 7 de dezembro, em Campo Grande, um leilão de animais, commodities, máquinas e produtos doados pelos próprios pecuaristas do estado, para arrecadar recursos para ações contra os indígenas. Deram ao evento o nome de "Leilão da Resistência". Declararam, no último dia 19, que já receberam 500 cabeças de gado como doação, equivalentes a, no mínimo, 500 mil reais.

O documento final da Quarta Assembleia do Povo Terena, que contou com a participação de mais de 300 lideranças Indígenas de todo o estado, representando os mais de 70 mil indígenas que lá vivem, declarava: "a tragédia está anunciada em Mato Grosso do Sul (...). É pública e notória a ameaça concreta intentada contra os povos indígenas pelos ruralistas deste estado". Para os indígenas, está claro: os “leilões da resistência" anunciados pelos produtores rurais "tem por objetivo financiar milícias armadas".

Em carta, os indígenas criticaram o Estado pelo abandono das negociações, no sentido de encontrar saídas para a questão indígena. "O governo federal instalou (...) uma mesa de diálogo na tentativa de resolver a demarcação de nossos territórios. No entanto, após vários prazos estipulados pelo próprio ministro [da Justiça], não há nada de concreto a ser apresentado aos povos indígenas".

As comunidades Terena, Guarani-Kaiowá, Guarani Ñandeva, Kinikinau e Kadiwéu em luta pela garantia de seus territórios tradicionais, tem relatado e denunciado à Polícia Federal, à Funai e ao MPF um sem número de casos de ataques a tiros, invasões, intimidações e ameaças de morte que os indígenas vem sofrendo no último período. Apesar disso, até o momento, nenhuma segurança permanente está sendo oferecida a estes povos.

Os indígenas conhecem bem o trabalho da segurança privada que os fazendeiros pretendem ampliar na região. Em contexto do conflito envolvendo indígenas e fazendeiros, em novembro de 2011, a empresa de segurança privada Gaspem, que prestava - e ainda presta - serviços a proprietários de terras que incidem sobre território tradicional indígena, foi acusada de envolvimento na morte do rezador Guarani-Kaiowá Nízio Gomes, no tekoha Guaiviry, em Aral Moreira. Na denúncia, o Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul (MPF-MS) classificou as atividades da empresa como de uma “milícia privada”, exigindo a suspensão das atividades da companhia. Em função do caso, sete pessoas estão presas, conforme relatou o MPF.

Jornais e televisões locais também tem associado o termo "milícias armadas" ao discurso dos ruralistas sobre o leilão e sobre as ameaças do dia 30 de novembro. Agências de notícias internacionais categorizaram o caso como "conflito sangrento (...) com características de guerra territorial".

É público e notória que, no Mato Grosso do Sul, os fazendeiros estão organizando força paramilitar para atentar contra a vida de coletividades e contra o Estado de direito no Brasil.

A "resistência" dos latifundiários é contra a demarcação das terras indígenas. É contra a realização de laudos e perícias pela Funai. É contra a organização política dos indígenas, que avançam na retomada de seus territórios tradicionais, frente à morosidade do Estado e da Justiça, de toda a violência que vem sofrendo, das mãos das forças policiais estaduais e federais, e das seguranças privadas “legais” ou ilegais que atuam na região. A dita "resistência" é, a rigor, contra a vida destas pessoas.

Em função desta conjuntura, extensão de um violento processo histórico de espoliação, confinamento e extermínio dos povos indígenas desta região, as organizações signatárias vem a público exigir da presidente Dilma uma intervenção federal imediata no Estado do Mato Grosso do Sul. O poder público pode e deve evitar esta “tragédia anunciada”, repetição sistemática do genocídio contra os povos indígenas. E isto precisa ser feito agora. O reconhecimento e a demarcação das terras indígenas é a verdadeira solução para a situação que está posta no Mato Grosso do Sul.

Brasília, 21 de novembro de 2013.

Conselho Indigenista Missionário – Cimi
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul – ArpinSul
Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo – Apoinme
Aty Guasu Guarani Kaiowá
Conselho de Caciques Terena
Conselho Indígena de Roraima – CIR
Instituto Kabu - Nejamrô Kayapó
Associação dos Índios Tupinambá da Serra do Padeiro – AITSP
CCPIO AP. Galibi Marworno – Paulo R. Silva
Vídeo nas Aldeias – Vincent Carelli
Operação Amazônia Nativa – Opan
Instituto de Pesquisas e Formação Indígena – Iepé
Instituto Socioambiental – ISA
Associação Terra Indígena Xingu – ATIX
Instituto Indígena para Propriedade Intelectual – Inbrapi
Hutukara Associação Yanomami (HAY) – Davi Kopenawa Yanomami e Dário Vitória Kopenawa Yanomami









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terça-feira, 12 de novembro de 2013

Enquanto o trem não passa

Produção: Mídia Ninja
Edição por www.fb.com/12PmPhotographic


                        

Ultimamente temos postado matérias sobre ameaças e ações efetivas contra a vida de povos tradicionais: índios, quilombolas, ribeirinhos. Muitos blogues e sítios do país têm denunciado com as tintas mais fortes o abuso, a insensibilidade e a cretinice de nosso sistema econômico com (des)respeito aos direitos desses povos e de nossas selvas e matas. 

O (des)envolvimento promovido tem sido na verdade o verniz ideológico de uma classe de gente miserável no espírito, na ética e na imaginação. Isso esmagou a dignidade humana de tal forma, que mesmo o mais duro e cru dos protestos parece não comover as "autoridades" que trabalham e militam a favor de um Estado patológico, cuja lógica é tirar o maior proveito do trabalho coletivo com o mínimo de retorno social. É um modo perverso de apropriação da riqueza do país, sem a mínima consideração àqueles em cujos ombros essa exploração mesquinha e gananciosa se apóia. 

Quem defende as ideias de livre iniciativa e propriedade privada não deve esquecer jamais que todo o trabalho é coletivo, todo o fruto desse trabalho é social, independentemente do quanto fica no bolso de quem o produz ou explora.

Portanto, é imperioso compreender e aceitar a ideia de que todas as decisões a respeito do trabalho devem ser coletivas, sociais e solidárias, ninguém tem o direito de se apropriar privativamente da riqueza do país. 

A iniciativa pode ser privada, mas a sua execução é SEMPRE social. Ordem jurídica, estradas, portos, comunicações, vias públicas, prédios - edificações de toda natureza, cultura, etc. Isso é criado de modo coletivo com o tesouro da união, é o fruto do trabalho (SEMPRE coletivo), que possibilita a criação das estruturas físicas, jurídicas e mentais para a implementação e desenvolvimento da iniciativa privada. 

A cultura, o coletivo, o trabalho social vêm antes do indivíduo. A linguagem e a compreensão de seus códigos é obra de todos. A iniciativa privada sem isso é apenas delírio.

A conclusão só pode ser uma: fazer uso privado dessa riqueza social é exploração indevida. E criminosa, quando o seu resultado, além de enriquecer meia-dúzia de aventureiros sem compromisso com as coletividades, traz resultados trágicos como o que vamos assistir a seguir.

O filme disponibilizado abaixo é de uma crueza insofismável, tem imagens impróprias para menores de idade, de estômago e de senso de realidade. 

E, por favor, que não se diga nada de "ideológico", que não se defenda a ordem instituída em nome da balança comercial, que não se tente enganar ninguém com promessas idiotas do tipo "riqueza do país", "desenvolvimento nacional" e outras baboseiras do tipo. 

Um minuto de silêncio... para a reflexão é suficiente.

Que se sinta com todas as fibras a dor pungente expressada no filme, que o coração inche de amor ao próximo e que o espírito se inflame da indignação mais pura. Que essa corda fique tersa o tempo que for preciso, até que se rompa essa lógica socialmente obtusa e homicida para o benefício de um punhado de aventureiros de mentes... 

Bem, cada um escolha o adjetivo que julgar mais adequado a essas organizações racionais que nos (des)governam.





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sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Código Mineral: de costas para a sociedade

Publicado originalmente em Outras Palavras, em 05/11/2013



Que muda com a nova lei de mineração, que Congresso analisará em 2014. Por que movimentos sociais precisam exigir debate público.

Por Marcelo Degrazia


O projeto do novo marco regulatório da atividade mineradora, o PL 5.807/2013, tem provocado críticas de vários setores da sociedade civil. Em especial por seu caráter antidemocrático (elaborado em gabinete fechado) e por fazer tabula rasa dos enormes impactos socioambientais causados pelas empresas. Aplainado pela frente parlamentar da mineração – a exemplo do Código Florestal de 2012, desfigurado pela bancada ruralista –, tem mais de trezentos e setenta emendas e deve ser apresentado à Câmara Federal nesta quarta-feira, 6 de novembro, pelo relator Leandro Quintão (PMDB-MG). Por suas falhas, pelas polêmicas que provoca e pela falta de discussão, sua votação deve ficar para o ano que vem.

O PL desagrada às gigantes do setor, que veem nele a porta de entrada à maior participação do Estado no negócio. E também às pequenas empresas de geologia e pesquisa mineral, que identificam no projeto reserva de mercado às gigantes, com sua provável expulsão do jogo. Já advogados apontam insegurança jurídica, pois o novo marco deixa o detalhamento de algumas matérias para decreto presidencial e regulamentação da agência fiscalizadora do setor, a ser criada.

A seu favor pode-se apontar a inovação no regime de concessões, o fato de que o Estado passa a ter participação no produto da lavra e que as concessões deixam de ser ad eternum.

“DNA” do Código

O PL prevê como regimes de concessão: a licitação, a chamada pública e a autorização. O primeiro caso será aplicado a áreas consideradas estratégicas e de grande valor econômico, segundo definição do Conselho Nacional de Política Mineral (CNPM) – outro órgão a ser criado. Fora isso, a concessão será precedida de chamada pública, por iniciativa da agência reguladora ou de interessado. A autorização, regime de concessão mais simples e rápido (que revoga o Regime de Licenciamento criado pela lei 6.567/1978), será aplicada para minérios de uso na construção civil: argila para tijolos, telhas e afins, rochas ornamentais, água mineral e minérios utilizados como corretivos de solo na agricultura.

Nas licitações, o código inova nos critérios de julgamento para a concessão. A exemplo do leilão de Libra, a empresa deverá oferecer um bônus de assinatura; e também um bônus de descoberta, depois de apurado o potencial econômico do bloco. Outro critério será o programa exploratório mínimo, um conjunto de atividades a ser realizadas obrigatoriamente pelo concessionário na fase de pesquisa.

Um dos critérios decisivos, que poderá ser considerado de maneira isolada ou combinada com um ou vários dos demais, é a participação no resultado da lavra. Hoje, a empresa concessionária tem direito a 100% da propriedade do produto da lavra. Aqui há uma mudança substancial em favor do Estado, que terá assegurada uma participação mínima no produto, sem prejuízo da carga tributária e de taxas. Aqui, seria desejável que os percentuais de participação do Estado já fossem definidos pelo código ou sua regulamentação, já que os governos mudam, a orientação das licitações sofrem ingerências políticas e não é de se duvidar, com base no histórico das concessões, a ocorrência de arreglo prévio entre empresas.

O prazo dos contratos não será mais ad eternum ou até o esgotamento da mina, mas terá vigência de quarenta anos, prorrogável por períodos sucessivos de até vinte anos, desde que as obrigações legais e contratuais sejam atendidas pelo concessionário. No ato da prorrogação, a critério do poder público, poderão ser incluídos nos contratos de concessão novas condições e obrigações. Vale ressaltar aqui que os novos contratos terão uma cláusula específica para os critérios de devolução das áreas e fechamento das minas, em que estará incluída a obrigação de recuperação ambiental das áreas afetadas pela atividade, “conforme solução técnica exigida pelo órgão ambiental licenciador”.

Sanções

As hipóteses de incidência de sanções serão reguladas pela nova Agência Nacional de Mineração (ANM). O código elenca quatro sanções administrativas (multa, suspensão temporária de atividade, apreensão de minério, bens e equipamentos, e caducidade), mas a agência estipulará as hipóteses e os critérios de sua aplicação. Mais uma fragilidade do código, pois a própria lei deveria trazer as hipóteses, critérios e graduação das penalidades, em especial nos casos de infrações socioambientais – evitando assim ingerências políticas nos regulamentos.

O caso da hidrelétrica de Belo Monte é um exemplo. Por não executar as condicionantes socioambientais exigidas pelo Ibama antes da Licença Prévia, fato denunciado pelo Ministério Público Federal, o consórcio teve suas atividades suspensas por decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em outubro de 2013. Mas o presidente do Tribunal, apoiado em lei editada em 1964 e reeditada em 1992, que suspende liminares contra o poder público se essas representarem “grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”, suspendeu a liminar. E assim a Belo Monte pôde retomar suas atividades que, entre outros efeitos, causam graves lesões à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública dos povos indígenas e ribeirinhos da região.

Assim como para Belo Monte, a lei das liminares também beneficiaria as mineradoras ao longo de toda atividade. Portanto, além da fixação dos critérios na própria lei, o Congresso deveria se empenhar para revogar a lei de 1964, criada para garantir, sem maiores considerações socioambientais, a continuidade de obras faraônicas como Transamazônica e Itaipu – num tempo em que a discussão do governo com a sociedade organizada e com as comunidades atingidas era praticamente nulo.

“Monopolização” da pesquisa

Ao contrário do código atual, o projeto reúne num único título a pesquisa e a lavra. Hoje é possível uma pessoa ou escritório de geologia fazer a pesquisa e, comprovado o valor econômico da área, negociar a concessão com uma mineradora. Ao vincular pesquisa e lavra num único título, concedido agora apenas a empresas capazes e habilitadas à lavra, diz o governo pretender, além de estimular a concorrência no setor, eliminar a “especulação” permitida pelo modelo atual.

Os bônus de assinatura e de descoberta, e o programa exploratório mínimo (que exigirá investimentos das empresas) são fortes instrumentos dessa nova política, pois, já eliminada a possibilidade de pesquisa por pessoas físicas, impossibilitariam a participação de pequenas empresas como outorgadas. Isso só não atinge a lavra garimpeira, regulada por lei específica. O projeto mantém a exigência de taxa anual por ocupação e retenção da área, de modo progressivo em função do porte da mineradora.

A consequência desse novo regime de pesquisa é nociva às pequenas empresas do setor, pois retira a figura da prioridade presente no código atual. Hoje, uma pessoa ou pequena empresa pode pesquisar e descobrir uma área com grande potencial econômico e obter a prioridade. Pelo novo código, porém, se a área estiver fora daquelas consideradas estratégicas pelo governo (para futuras licitações), deverá informar suas características e localização exata, e não terá direito à prioridade pela descoberta. Ao contrário, haverá uma chamada pública, e se a área for mesmo de grande potencial econômico atrairá o interesse das grandes empresas, que fatalmente a abocanharão.

As pesquisas ficam assim prejudicadas, e muitas das pequenas empresas do setor estarão sendo jogadas para fora do mercado em favor das grandes. Isso abre a possibilidade de uma concentração, com as grandes empresas absorvendo as estruturas e mão de obra das pequenas. Vale lembrar que, nesse trabalho pesado e inóspito de pesquisa, as chamadas junior companies são reconhecidas por descobrir a maior parte de depósitos minerais com potencial econômico. Em dez anos, foram localizadas por elas mais de 2,8 milhões de toneladas de níquel, mais de 800 mil toneladas de cobre, mais de 650 milhões de toneladas de ferro e mais de mil toneladas de ouro, cujo valor total in situ soma mais de 164 bilhões de dólares – conforme Nota de Repúdio e Resposta ao Ministro Edison Lobão, assinada por entidades do setor.

Não se deve perder de vista, porém, que pelos tipos de concorrência o modelo proposto valoriza mais os depósitos minerais, os quais são, em última instância, riqueza da União. Talvez aqui a saída fosse criar um bônus de descoberta que revertesse, inteira ou parcialmente, ao descobridor do depósito. Acontece que a figura do bônus está presente apenas no modelo de licitação. Tal solução estimularia a pesquisa em áreas não cobertas pela Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), que passará a ter papel central no assunto.

A CPRM, vinculada ao Ministério de Minas e Energia, será encarregada de desenvolver estudos e pesquisas científicas e tecnológicas para o aproveitamento dos recursos minerais. O governo federal destaca o papel da CPRM como fundamental para a realização da pesquisa de minérios, bem como para a implantação e gestão de informações sobre geologia, recursos minerais continentais e marinhos, entre outros. Suas informações geológicas sobre o potencial exploratório do território ajudarão a orientar as licitações quanto à escolha dos blocos a serem disponibilizados para atividades de pesquisa e lavra.

Em outras palavras: o governo promete investir em pesquisa para aumentar as possibilidades de exploração da geodiversidade do país, e dessa forma aumentar a participação do setor no PIB nacional, hoje em torno de 4%.

Nova política de mineração

O PL cria o Conselho Nacional de Política Mineral (CNPM), órgão vinculado à presidência da República e presidido pelo ministro de Minas e Energias – responsável por propor diretrizes para o planejamento da política mineral. E também a Agência Nacional de Mineração (ANM), autarquia vinculada ao Ministério, com autonomia financeira e administrativa. A ela caberá regular, fiscalizar e promover a gestão de informações do setor. Será responsável pela implementação da política nacional para a atividade minerária, em apoio técnico ao CNPM.

A ANM será sucessora do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) , criado em 1934. Uma das razões para a substituição do órgão atual é a precariedade da fiscalização e o acúmulo de sanções administrativas aguardando solução. A “espera” pode chegar a vinte anos. Na verdade, o que as empresas aguardam é que sejam abonadas suas multas e penalidades. A lógica, aqui, é a mesma aplicada aos infratores ambientais com a aprovação, em 2012, do novo Código Florestal: anistia das dívidas por desmatamento ilegal, gerando o conhecido clima de impunidade. Assim como neste pesou a atuação da bancada ruralista no Congresso, agora é a vez da frente parlamentar da mineração, financiada em suas campanhas eleitorais por empresas do setor como Vale, Usiminas etc.

Mais recursos para a União

Outra mudança, curiosamente reclamada sem ênfase pelas empresas, é o aumento da Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM). Atualmente de 0,2% a 3%, chegará até a 4%, a partir do teor do minério e de suas respectivas cadeias produtivas. O minério de ferro, por exemplo, passará de 2% para 3%. As alíquotas de cada mineral serão definidas por decreto da presidência. Com a mudança, o governo espera elevar a arrecadação atual, de 1,8 bilhão de reais, para 3 bilhões de reais.

Outra mudança significativa, que deverá impactar o montante da Compensação, é a da base de cálculo da CFEM. Esta deixará de ser a receita líquida das empresas para ser a receita bruta de vendas, deduzidos os tributos efetivamente pagos (ICMS, PIS, Cofins). Já a distribuição da CFEM permanecerá a mesma: 12% para a União, 23% para os Estados e 65% para os municípios, no caso de a produção ocorrer em seus territórios. Esse pacote de bondades para os municípios é fruto do reconhecimento dos violentos impactos socioambientais causados pela atividade mineradora. Em princípio, as receitas deverão ser aplicadas em projetos que beneficiem as comunidades locais atingidas pelos empreendimentos, fiscalizadas pelos órgãos federais, comunidades atingidas e eleitores em geral.

Neodesenvolvimentismo e velhos danos socioambientais

Tudo indica que, com esse marco regulatório, o governo quer provocar um novo surto desenvolvimentista no setor, sem considerar questões socioambientais. A elas são feitas apenas referências de ordem genérica, que na “hora H” poderão sofrer o enquadramento coercitivo do Estado, na tradição do relevante interesse público da União, ou, nos termos do novo código: “o aproveitamento dos recursos minerais é atividade de utilidade pública e de interesse nacional”. Mas não reserva nenhum artigo aos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, que fatalmente continuarão sendo atingidos. Nenhum dispositivo concreto sobre impacto ambiental, nenhuma palavra sobre biodiversidade. É a velha política, nociva e leniente, no novo código.

Na prática, a CFEM é uma transferência de responsabilidades. Mas contratos atuais, tal qual o da Belo Monte, já trazem como condicionante ambiental o investimento em postos de saúde, escolas, vias públicas etc. Uma ação ajuizada contra o não-cumprimento de condicionantes socioambientais para obter as licenças, situação comum na exploração de recursos minerais e hídricos, leva em geral anos para chegar a um termo, e, quando isso ocorre, não há como voltar ao estado anterior, pois o fato está consumado. Restará pleitear uma indenização financeira, cujo valor será consideravelmente reduzido por ingerências políticas, quando não anulado pelo perdão do Estado. É o último confisco do grande capital praticado contra as riquezas brasileiras, aqui incluídos os povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e todo o sacrifício de fauna e flora realizado em nome do lucro da iniciativa privada.

Embora o projeto de lei faça oito referências genéricas à cultura ambientalista, em expressões como forma sustentável, recuperação ambiental e recuperação dos danos ambientais causados pela atividade de mineração, ele, juntamente com o Código Florestal de 2012, representa na verdade uma guinada conservadora na política ambiental brasileira, em favor de um surrado modelo exportador de commodities.

Apesar da grande importância do setor na economia do país, isso não exime o poder público de sua responsabilidade de consignar os instrumentos jurídicos, políticos, materiais e humanos para, na implantação de sua nova política mineral, assegurar de maneira eficaz os direitos dos povos e da natureza.

Ligações Perigosas

Na elaboração do projeto do novo código, é possível constatar as distorções políticas do nosso modelo de representação parlamentar, como fica evidente na pesquisa de Clarissa Reis Oliveira, “Quem é quem nas discussões do novo código da mineração”, produzida pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

O deputado federal do PT mineiro Gabriel Guimarães, por exemplo, – titular na Comissão de Minas e Energia, na Subcomissão Permanente sobre o Marco Regulatório de Mineração do Brasil e presidente da Comissão Especial que analisa a proposta do novo código – foi eleito em 2010 com financiamento da Gerdau Comercial de Aços S/A, Cia. Brasileira de Metalurgia e Mineração e Rima Industrial S/A, entre outras, numa campanha nada modesta de 3 milhões de reais. Também o relator do projeto, deputado federal Leonardo Quintão (PMDB-MG), foi financiado, no mesmo ano, por empresas como Usiminas, Gerdau e Acelor Mittal, com quase 20% da receita declarada de 2 milhões de reais provenientes do setor de mineração.

Esse é o grau de promiscuidade existente entre as empresas privadas e aqueles que deveriam representar a população. (Conforta lembrar campanhas modestas, de cem a duzentos mil reais, financiadas em grande parte por doadores individuais, além do próprio candidato).

Mais um dado, no mínimo perturbador. Um dos signatários do projeto enviado ao Congresso é o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, cujo filho é proprietário da mineradora Vale do Sol. O que dizer dele e da frente parlamentar da mineração, e outras frentes, que não apenas advogam, mas também legislam em causa própria? (Mais “ligações perigosas” na matéria da Agência Pública.)

A subordinação dos políticos às corporações parece evidente nos anos de contato entre equipes do governo e representantes das empresas do setor, em que diversas sugestões e reparos foram propostos por estes e acatados por aqueles. As discussões foram feitas nos gabinetes, e em nenhuma etapa entidades civis foram convidadas a participar. O lacre final do projeto foi votação em regime de urgência.

Os vínculos entre a política institucionalizada e as corporações que detêm o poder de fato alijam as organizações civis do debate e reforçam os métodos antidemocráticos de parte considerável da sociedade brasileira. É o que chamamos de o poder na sombra.
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terça-feira, 5 de novembro de 2013

Transgênicos: mais agrotóxicos na sua mesa

Por Elenita Malta Pereira


Debate sobre impactos de novas sementes transgênicas, em vias de liberação no Brasil, deve se restringir a técnicos, segundo governo


“No presente, a ciência serve muito mais e objetivamente à técnica e à economia


do que à sociedade”

(Gilles-Eric Serralini, 2011)



Na última reunião da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTN-Bio), em 17 outubro, foi rejeitado pedido de audiência pública apresentado pelo Ministério Público Federal, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) para realizar um debate aberto com a sociedade sobre os impactos de sementes transgênicas resistentes ao herbicida 2,4-D – que estão em vias de liberação no Brasil. Segundo o representante do Ministério da Ciência e Tecnologia, Ruy de Araújo Caldas, a comissão não pode ser palco político para “leigos” no assunto: os debates devem ficar sob responsabilidade dos técnicos.

No entanto, a questão dos transgênicos envolve questões políticas que deveriam, sim, ser divulgadas entre a população “leiga”. Desde sua chegada no Brasil (em 1997, com a “soja maradona”), os Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) têm sido alvo de polêmicas e muita desinformação ao consumidor – o mais atingido pelas decisões dos “técnicos”. Não há consenso quanto às consequências dessa tecnologia para a saúde e os ecossistemas, especialmente quanto ao uso cumulativo de agrotóxicos. A CTN-Bio, instância científica que delibera sobre o assunto, tem sido alvo de críticas desde a publicação da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), por seus superpoderes e caráter antidemocrático.

Nos anos 1990, os transgênicos foram defendidos como alternativa benéfica para a agricultura: as modificações genéticas levariam à redução da fome no mundo, pelo aumento da produtividade, e à diminuição do uso de pesticidas. No entanto, as “ervas daninhas” adquiriram resistência – especialmente ao glifosato, principal herbicida usado em OGMs. As gigantes da agroquímica estão criando sementes para aguentar produtos mais agressivos, porque o glifosato sozinho já não é eficiente para matar “plantas invasoras”. Também a fome mundial aumentou, nos últimos quinze anos. Os argumentos de que, com os OGMs, a agricultura utilizaria menos agrotóxicos e resolveria o problema da fome falharam.

Guerra de gigantes

Sementes de soja e milho, com tecnologia da Dow Chemical, estão na iminência de ser aprovadas no Brasil. Elas resistem a três herbicidas: glifosato, glifosato de amônia e 2,4-D – este, um dos componentes do Agente Laranja (jogado pelos Estados Unidos no Vietnã nos anos 60), fabricado por sete empresas, entre elas a Dow e a Monsanto.

A Monsanto, por sua vez, está substituindo sua tecnologia RR, com tolerância ao glifosato, já que as plantas adquiriram resistência ao herbicida, e lançou a RR2, que além do herbicida incorpora genes produtores de proteínas inseticidas, capazes de acabar com a lagarta helicoverpa – recentemente surgida nas lavouras de RR. A tecnologia da Dow promete matar as plantas que já não morrem mais com glifosato e glifosato de amônia. Mas a Monsanto não quer perder a liderança nesse mercado e também pretende lançar sementes de soja e milho resistentes ao herbicida Dicamba.

O impressionante é que as sementes de ambas as empresas podem ser aprovadas no Brasil antes mesmo de serem aprovadas nos Estados Unidos, seu país de origem. Segundo o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, membro da CTN-Bio, o milho da Dow com 2,4-D pode ser aprovado até o final do ano, enquanto a soja pode demorar um pouco mais. E a soja com Dicamba também está em avaliação. “Basta que tramitem na CTNBio e recebam parecer favorável da maioria dos membros daquela comissão”, segundo Melgarejo.

A “novidade” dessas tecnologias é o uso de dois herbicidas muito perigosos, em especial o 2,4-D, substância que compôs 50% do tristemente célebre Agente Laranja – cujo uso pelos EUA, na Guerra do Vietnã, para destruir as florestas e assim visualizar melhor o inimigo deixou, até hoje, um legado de deformações, envenenamento e morte. Ele está classificado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como extremamente perigoso à saúde (classe toxicológica I), e ao ambiente (classe III).

Além disso, tanto o 2,4-D como o Dicamba são herbicidas com grande deriva e volatilidade, ou seja, são facilmente espalhados pelo vento, podendo contaminar lavouras não transgênicas – motivo pelo qual produtores dos EUA vêm protestando contra seu uso – e deixando o consumidor sem escolha. Mais importante: não há total segurança de que os transgênicos sejam inócuos à saúde humana, como afirmam seus defensores.

Dioxina e 2,4-D

Na tentativa de “garantir” a inocuidade do herbicida, a Dow e mais três empresas do ramo da biotecnologia montaram a Força Tarefa 2,4-D, um website destinado a divulgar informações sobre o agrotóxico. Segundo as empresas, “o uso do 2,4-D está relacionado ao seu papel indispensável para o controle de plantas daninhas no sistema do plantio direto, manejo do solo que iniciou o conceito de agricultura ambientalmente sustentável”. No site, há estudos que comprovariam a segurança humana e ambiental no uso do herbicida. Para as empresas, o 2,4-D não deveria ser associado com o Agente Laranja, já que a dioxina – a substância mais tóxica já inventada pelo homem, tão persistente e devastadora que continua presente no território vietnamita, causando contaminação do ambiente e das pessoas, especialmente crianças, e relacionada a várias doenças graves, conforme relatório do Instituto de Medicina dos EUA – só se formaria junto com outro componente, o 2,4,5-T.

No entanto, pesquisadores consideram que o produto não é seguro para a saúde ou para o ambiente, independente da presença da dioxina. Segundo o biólogo e pesquisador Gilles Ferment, o 2,4-D possui potencial de perturbador endócrino (capaz de alterar as funções hormonais) e de agente cancerígeno. Os perturbadores endócrinos podem causar danos à saúde humana durante o desenvolvimento fetal e infantil.

O dossiê “Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde”, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), citou pesquisas que relacionam o 2,4-D como um dos agrotóxicos responsáveis por contaminação da água. Especialistas se mostram preocupados com o uso generalizado da substância, a partir da aprovação das sementes transgênicas. Robin A. Bernhoft, médico e um dos diretores da Academia Americana de Medicina e Meio Ambiente, afirmou que o 2,4-D é considerado a causa de todos os cânceres e defeitos genéticos nos filhos de ex-combatentes americanos no Vietnã e de vietnamitas expostos ao Agente Laranja.

Chuck Benbrook, professor e pesquisador da área de sustentabilidade e saúde na agricultura da Universidade do Estado de Washington, apontou o risco de que a maior parte do 2,4-D usado no Brasil seja importado da China, com altos níveis de dioxina: “Concordo que o 2,4-D da Dow é muito mais limpo do que o dos anos 1970, mas quem pode garantir que os agricultores brasileiros irão comprar o 2,4-D mais caro e mais limpo?”. Isso também preocupa Leonardo Melgarejo: “A empresa alega que no Brasil só será utilizada a formulação ‘amina’, que não é volátil, com a qual a dispersão das partículas seria menor. Entretando, a formulação ‘éster’ é mais barata. E é comum a identificação, pela Anvisa, de aplicações de produtos proibidos e adulterados, coisa que ocorre fundamentalmente por conta da diferença de custos”.

Riscos e precaução

Gilles Ferment, um dos organizadores do livro “Transgênicos para quem” (download gratuito), afirma que as multinacionais de transgenia e os órgãos públicos de regulamentação instituíram o princípio de equivalência substancial: os produtos transgênicos não possuiriam propriedades diferentes dos não-transgênicos. Já que “as plantas transgênicas são consideradas iguais às não-transgênicas, basta adicionar estudos de bioensaios sobre alguns organismos não-alvo e alguns testes de toxicidade sobre camundongos para declarar definitivamente a segurança do OGM”, afirmam. Contudo, a avaliação do risco desses produtos deveria englobar os riscos para o funcionamento dos ecossistemas, bem como os impactos sociais decorrentes do emprego da tecnologia.

O princípio da precaução – obrigação legal no processo de análise de risco dos transgênicos e de atividades que possam causar dano ambiental, assumida pelo Brasil e diversos países no Protocolo de Cartagena, em 2000 – recomenda que, antes da aprovação do uso dessas sementes, sejam realizados testes à exaustão, que comprovem de fato a sua segurança e inocuidade ao ambiente e à saúde humana. Mas ele não vem sendo aplicado. O princípio estimula conhecer antes de usar. Na dúvida, não se deve ir em frente, pois os prejuízos, desconhecidos, podem ser irreversíveis. Segundo Ferment, um ex-presidente da CTN-Bio caracterizou o princípio da precaução como “anticientífico”, “inventado para derrotar a ciência”.

Além do risco dos transgênicos em si, há o risco inerente à aplicação dos agrotóxicos. Uma das características mais preocupantes do 2,4-D (e também do Dicamba) é o alto grau de disseminação do produto no ambiente, para além da área alvo da aplicação. Existe, portanto, risco de contaminação de lavouras ou de áreas em torno da plantação, especialmente no caso de aplicações aéreas.

Nos EUA, a organização de agricultores Save our crops vem lutando contra a aprovação de OGMs utilizando 2,4-D e Dicamba. Eles temem a contaminação de seus cultivos – não transgênicos –, pois, embora recomendados para aplicação via aérea, “ambos os pesticidas são notoriamente propensos à deriva e volatilização, causando lesão e morte de plantas de culturas vizinhas e paisagens rurais”. No Brasil, alerta o engenheiro agrônomo Sebastião Pinheiro (UFRGS), considerando as altas temperaturas e ventos, jamais se deveria usar avião para aplicar agrotóxicos.

Recentemente foi divulgado um caso que justifica a precaução: aplicação de agrotóxico por via aérea atingiu uma escola em Rio Verde (GO), literalmente banhando crianças e professores que desfrutavam do horário de recreio. Todos ficaram intoxicados. Pelos riscos envolvidos nesse tipo de aplicação, a Campanha Permanente Contra o Uso de Agrotóxicos pede que ela seja banida, como já ocorre na União Europeia.

E o consumidor?

Em meio a um mar de desinformação e mal entendidos, o consumidor está ficando praticamente sem opção. Faça o teste: quando for ao supermercado, dê uma olhada nas prateleiras dos produtos à base de milho e soja e veja se consegue encontrar uma marca cuja embalagem não esteja identificada com o triângulo amarelo. Na maior parte dos grandes supermercados, uma marca de óleo de soja não-transgênica pode talvez ser encontrada, com sorte, em meio à grande maioria transgênica. Farinhas, polentas, canjicas, salgadinhos, bolachas, fermentos para bolos e outros produtos que utilizam milho ou amido de milho também são, em grande parte, transgênicos. Os fabricantes alegam não haver milho não-transgênico à venda.

Outro ponto a ser observado é que as sementes de milho não-transgênicas estão sendo cruzadas com as transgênicas pela ação do vento na polinização. O problema é gravíssimo, pois representa ameaça real à biodiversidade brasileira – se continuar, não existirão mais sementes “crioulas”, aquelas transmitidas de geração a geração, desde os indígenas até a agricultura orgânica familiar. Seria o fim de um capítulo da história de populações tradicionais, que vêm guardando essas sementes ao longo de décadas – e até séculos.

O fato de que os produtos que utilizam transgênicos estejam sinalizados com o “T” nas embalagens é uma vitória do consumidor, que tem o direito de saber o que contém um alimento. O problema é que até essa conquista básica pode estar ameaçada. Dois Projetos de Lei (PL) de senadores da bancada ruralista já tentaram barrar ou modificar a rotulagem, o PDL 90/2007, de Kátia Abreu (PMDB-TO) e o mais recente, PL 4148/2008, de Luis Carlos Heinze (PP-RS). Esse último, com a justificativa de que o símbolo com fundo amarelo, semelhante a placas de advertência, tensão ou risco, “vincula o alimento que contenha DNA ou proteína obtida através de organismo geneticamente modificado a circunstâncias de perigo, nocividade, cuidado, alerta, e outras mais para as quais a apresentação gráfica é usualmente destinada”. Mas a intenção da rotulagem é justamente essa: alertar os consumidores, já que não há comprovação científica da total segurança dos transgênicos para a saúde humana, como recomenda o princípio da precaução.

A bancada ruralista também quer mais flexibilização para os agrotóxicos. Segundo textodo Deputado Rosinha (PT-PR), em setembro de 2013 a Câmara dos Deputados aprovou a Lei de Conversão (nº25/2013) da Medida Provisória 619/2013, que vai agora à preciação do Senado Federal. Nela foram introduzidos três artigos, os de nº 52, 53 e 54, que tratam de agrotóxicos. O artigo 53 é o mais perigoso, pois concede ao ministro da Agricultura o poder de regular a importação, produção, distribuição, comercialização e uso de agrotóxicos – medidas hoje de competência da Anvisa. Esse artigo poderá permitir que ato do ministro flexibilize as regras atuais e autorize o uso de agrotóxicos não permitidos, em “caráter extraordinário e quando declarado estado de emergência fitossanitário e zoossanitário”. Para o deputado Rosinha, o artigo “dá poder ao Ministério da Agricultura (Mapa), dominado pelos ruralistas, e subjuga os outros dois órgãos (Anvisa e Ibama) para decidir o que bem entender quanto ao uso de venenos (agrotóxicos) na agricultura”.

Se a lei for aprovada nesses termos, representará enorme retrocesso na regulamentação dos agrotóxicos. Nos anos 1970-80, durante a ditadura militar, órgãos do Mapa eram responsáveis pelo assunto, e sua proximidade com as empresas agroquímicas foi amplamente criticada. A pressão dos ambientalistas levou à aprovação da primeira lei dos agrotóxicos no Brasil, a do Rio Grande do Sul, em 1982, e à legislação nacional, em 1989.

Ainda há esperança?

O forte movimento para ampliar a utilização de OGMs e agrotóxicos sem observar o princípio da precaução, no Brasil, exige do consumidor cuidado redobrado. Além de ler os rótulos dos produtos, uma dica é ficar atento ao website da CTN-Bio – que também é criticada pelas relações duvidosas de alguns de seus membros com as multinacionais de OGMs. Vale também ficar alerta aos movimentos de congressistas que visam reverter conquistas importantes, como a rotulagem dos alimentos geneticamente modificados.

A boa notícia é que, paralelamente, a agricultura orgânica e ecológica está em expansão no país. Além do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, lançado pelo governo federal em outubro, acontece entre 25 e 28 de novembro, em Porto Alegre, o mais importante evento de agroecologia no país. O Congresso Brasileiro de Agroecologia, em sua oitava edição, contará com mais de 1.000 trabalhos a serem apresentados nas modalidades comunicação acadêmica, relato de experiências e exposição de pôsteres. Esse número expressivo de participantes, além do público ouvinte, sinaliza que existe muita pesquisa na área, o que demonstra a aceitação e vitalidade do tema.

O argumento de que a agricultura precisa de todo o pacote tecnológico que propugna indispensáveis o uso de agrotóxicos e sementes geneticamente modificadas para alimentar o mundo não tem mais sentido. Esperamos que mais e mais recursos sejam destinados à agricultura ecológica para que possa expandir seu espaço de atuação, especialmente em propriedades familiares, que valorizam a terra, o respeito e o cuidado com o solo, com os animais e vegetais que habitam a propriedade, com seu semelhante que vai comer o alimento, e, por extensão, todo o planeta. Partindo de “uma ética que liga tudo com tudo”, como dizia Lutzenberger em seu Manifesto Ecológico, essa agricultura pode, quem sabe, curar o mundo.


Elenita Malta Pereira é historiadora, autora de "Roessler: o homem que amava a natureza" e do blogue A Voz da Primavera



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