sábado, 24 de agosto de 2013

Pode ser que seja eu, pode ser que seja Deus

Morning Sun, 1952, Edward Hopper
      Ela está sozinha.
      Sentada na cama, pensa. Não faz mais que isso. Não há mais nada a fazer, o mundo está vazio e ela sabe disso. Não adianta gritar ou correr; nem partir os cristais. Ninguém virá. Os cristais estão em sua garganta. Sozinha, o tempo não existe, sua vida não existe. Passado, memória, cárcere. Avança, recua, voltas e voltas dentro dele. Mas não procura a saída, sabe que não há portas, apenas o muro. O inferno é ela mesma, o inútil batimento de seu coração. Já chorou tudo que tinha, já pediu o impossível, já gemeu baixinho. Já perdeu toda a esperança.

Excursão na Filosofia, 1959, Edward Hopper
      Eu estou sozinho.
      Da inutilidade de minha existência, do vazio ao redor, do nada além de mim tirei o que pude. Dei forma a tudo, criei espaços e tempos - criei vida. Mas não sei o que me criou, não sei meu fim nem o que sou. Sempre amei, mas não descobri a forma de me mostrar. Eu não tenho forma. Sempre encoberto. Criei todas para me encontrar e acabei perdido. Ninguém viu minha face real, me atribuem máscaras. Ergueram ídolos e totens; derrubaram ídolos e totens, mas nunca chegaram a mim. Tudo que criei sou eu mesmo; nem assim me reconhecem. Nem eu me reconheço. Talvez eu não tenha uma face real.

Verão Interior, 1909, Edward Hopper
      Ela está sozinha porque não acreditou em mim, em tudo que fiz para convencê-la de minha existência. Em cada coisa que tocou, procurou meu nome; na forma dos objetos, investigou minha imagem; provou os alimentos em busca do meu sangue. Cerquei-a, mas não adiantou. Gritei a cada toque seu, respondi a cada palavra sua. Através da luz, através dos pássaros, através de tudo à sua volta disse que a amava e que o seu destino era eu. Que o meu destino era ela. Porém não aconteceu, pensou que tudo mentia, que apenas a enganavam. Virou as costas para mim.
      Eu não tinha mais nada a fazer senão destruir o mundo. O problema é que destruí a mim também. Sou o mundo dela, mas ela não sabe. Dorme, pensando. Achou que amava, e que por isso não precisava de mim. Me esqueceria. Então, eliminei o primeiro a quem se entregou. Mas ela foi até outro e renovou seu amor. Destruí-o. E destruí também o terceiro, o quarto... - todos a quem ela se entregava. Mas como o seu destino era amar, a cada um eliminado, encontraria outro. 

      Então eliminei todos à volta dela para que cumprisse a sua sorte no único sobrevivente. Aquele que ainda a envolve, aquele sobre quem ela mantém os pés, aquele que ela bebe, come, respira - cospe. 
      Não adiantou. Ela não me ama, e como não pode cumprir o seu destino, sofre.


Quarto em Nova York, 1932, Edward Hopper

      Eu sofro. Sofro a falta desse amor que me daria vida, a forma exata, o meu destino - talvez um fim. Usei todas as coisas para convencê-la do meu sentimento. Me desfiz. Quero ajudá-la, mas não tenho braços nem pernas, não tenho voz com que chamar por ela, não tenho boca para beijar sua chaga. 

       Fiz tudo que podia. 
       Fui, sou o mundo todo só para ela. É pouco. Não tenho a maldita forma humana que ela busca para se consolar. Se eu (que eliminei todos à sua volta) aparecesse sob tal disfarce, ainda assim não me reconheceria. E quando por fim eu soprasse meu nome ao seu ouvido, sorriria - incrédula! Se sou, se faço tudo, me despreza. Se sou humano, não acredita.
      Hoje pela manhã bati à sua porta. Abriu, mas não viu nada além do vazio. Pensou que fosse ilusão e voltou-se para dentro. 

Quarto de Hotel, 1931, Edward Hopper
      Foi até a prateleira, tirou um livro e folhou-o. Fiz o seu olhar recair nestas linhas. Leu, mas imaginou fosse apenas literatura fantástica, que não tivesse nada a ver com ela nem comigo. 
      Mas não perdi a esperança, e quando ela preparar seu alimento, serei o amido. Quem sabe se assim, ao me esmagar entre os dentes, sua língua reconheça o meu sabor em sua boca, e ela afinal descubra que eu existo e vivo só para ela, para alimentar sua paixão, para curá-la de toda essa solidão.