quinta-feira, 18 de julho de 2013

O Nariz

   

     Foi no tempo do sonho.
     De férias em Capão da Canoa, fui para a beira da praia sacudir o tédio. Era final de tarde. Um grupo de adolescentes como eu disputava uma animada partida de futebol. Eu também queria bater aquela bolinha, fiquei atrás de um dos gols até que a peronha saísse para pedir uma vaga.

     Para garantir lugar nos jogos de beira de praia, era preciso encontrar o dublê, um para cada lado e o equilíbrio das equipes, ao menos numérico, estaria garantido. Éramos três os aspirantes. Procurei disfarçar a inquietação com o pensamento de que no instante da escolha, quando atuasse o famigerado olho clínico – tem melhor olho quem melhor joga – logo ressaltaria, na relação com os outros aspirantes, a minha pinta de jogador. Eu não era craque, mas batia um bolão, conhecia metade deles de outras partidas.
     Quando a bola cruzou a linha de fundo e interrompeu o jogo por alguns instantes, fizemos os três o que também era regra em tais ocasiões: procuramos, com olhar ávido, o mandarim do jogo. Mas era apenas quando o jogo cessava que os traços do mandarim se cristalizavam.  Não era difícil reconhecê-lo entre os demais, só exigia um pouco da atenção treinada, afinal ele também tinha a sua pinta: a de dono da bola.
     Mas era preciso ser rápido, do reconhecimento dependia o lugar no jogo.
     Quando a bola finalmente cruzou a linha de fundo, me antecipei aos demais e atrai a atenção do dono da bola. Assim que ele pôs o olhar em mim, fiz a senha com o polegar, também regra em tais momentos, que se traduzia por:
     "Tem uma boquinha, aí?”
     Sua reação no entanto foi espantosa. Com olhar ferino, ele disparou:
     "Tem, mas não pra você!”
     Resvalei na situação, olhei instintivamente para os lados. Queria um amparo, a sentença talvez não fosse pra mim. 

     Ele, com sarcasmo nos lábios, chegou perto de mim e desferiu:
     "Você não, você é judeu!"

     Eu disse que se tratava de um equívoco. Então a surpresa maior. Ele sorriu com desdém. Desconcertado, pensei em chamar sua atenção para os meus cabelos, minha cor de pele, a ausência de sardas e para o que me parecia o argumento irrefutável: eu não tinha o melzinho na pálpebra inferior bem próximo ao duto lacrimal. Mas a tempo percebi que qualquer esforço nesse sentido, além de inútil, seria um absurdo completo.
     Já decidido a abandonar esse jogo estúpido, ia saindo quando ele, com uma provisão a mais de sarcasmo, momentos antes de indicar a função dos novos jogadores, o indicador direito levantado à altura dos meu olhos, escarneceu:
     "O nariz! O nariz é de judeu!”