SINOPSE DE "DEIXA A VIDA VOAR"
(ver trecho abaixo)
Deixa a Vida Voar é uma novela juvenil,
ambientada na Porto Alegre de hoje, cujos personagens principais são
adolescentes colegas de uma mesma escola. Depois de um acidente de trânsito em
que um deles é vítima e culpado, sua aceitação por parte da turma da escola
decai bastante, de tal modo que o jovem procura algo com que recuperar sua
imagem. A saída será meter-se numa investigação sobre o batizado do leite, conforme notícia veiculada na mídia.
Nessa
jornada, o herói enfrenta uma série de dificuldades e desafios acima das forças
normais para sua idade. A queda inicial deveu-se sobretudo por um
comportamento seu contrário às normas, como dirigir uma moto sem habilitação. A
ação dele e de seu colega e amigo é para desmascarar uma empresa que vinha
adicionando soda cáustica e bicarbonato ao leite comercializado em
supermercados por ela, episódios baseados em fatos reais que chocaram a opinião
pública anos atrás. Os episódios se prestam para refletir sobre os limites
éticos tanto de empresas quanto de cidadãos violadores da lei.
O envolvimento emocional
de um dos protagonistas com uma garota do colégio é oportunidade para abordar o
amor apaixonado dos adolescentes, cujo surgimento muitas vezes forçam os
limites das linhas de conduta traçadas pela família e a escola, com
consequências muitas vezes graves. Outro tema importante que percorre todo o
livro é o processo de separação dos pais da personagem masculina que
se envolve no acidente e nas investigações, drama hoje bastante comum nas famílias
brasileiras.
O livro já se encontra
muito próximo de uma forma ideal, em especial na estrutura, cujos encaixes das
cenas me parecem bastante firmes. Faltaria ainda um polimento final e talvez alguns ajustes em vista de um leitor juvenil, algumas
especificidades para a literatura dessa categoria.
A novela tem um bom ritmo,
as ações e os parágrafos mais reflexivos (sem nunca romperem a narratividade)
estão bem equilibrados. Isso e a linguagem ágil e coloquial, com boa dose de diálogos, dão à obra a fluidez adequada para o tema sob a ótica de um público
jovem, mas sem nunca abrir mão da crítica. Esta não se oferece de maneira
descolada dos episódios, ao contrário vem imbricada na própria narrativa dos mesmos, para não sobrecarregar o leitor de conceitos e máxima supostamente
pedagógicas.
Embora a problemática ética bastante visível, a novela não padece
de moralismos ou coisas do gênero. Ao contrário, meu propósito ao escrevê-la
foi sobretudo oferecer ao leitor adolescente uma leitura instigante, com altas
doses de adrenalina, como no episódio do acidente e nas invasões noturnas da
escola e da empresa investigada pela adulteração do leite. Como há envolvimento
de um jornalista a certa altura, o episódio principal é oportunidade também de
enfocar e refletir sobre o papel da mídia em nosso meio.
trecho de Deixa a Vida Voar
Ao chegar no colégio,
encontrou Nando com a mochila no ombro. Encostado ao balcão do bar, trocava uma
ideia com o atendente, o Luiz, enquanto comia a sua mil-folhas com refri. Ao
lado dele, alguns colegas do turno da tarde se despediam. Os professores já
chegavam para a reunião.
Deram um tapa de mão e
Gustavo pediu quindim e suco de laranja. Em seguida, sentaram numa das mesas
para terminar de comer.
- Cadê a Kati? – disse
Gustavo.
- Não sei, já devia ter
chegado.
Gustavo mordeu o
quindim:
- Ela tá levando a
sério o torneio. Já joga melhor do que eu. Antes do acidente me deu um
cheque-mate em dez jogadas. Com as pretas!
Nando terminou a
mil-folhas, limpou os lábios com o guardanapo e fez uma bolinha de papel.
Enquanto mexia com ela sobre o tampo de fórmica, disse:
- A Kati leva a sério tudo
que faz. E não desiste. Já tirou outra moto, sabia? O seguro deu perda total. Ela
até gostou, escolheu um modelo melhor.
- Mas o pai dela não ia
comprar um carro.
- Ela disse que não largaria
o sonho dela por causa da tua burrada.
Gustavo tinha falado por
alto sobre aquela noite com Kati, mas se concentraram mais no acidente em si,
na sua recuperação, no tempo de convalescença. Para ela, por razões diferentes
das suas, parecia constrangedor tocar nas questões práticas e materiais, como
os danos, a remoção da moto para o depósito da prefeitura, a burocracia para
liberá-la, o seguro, as despesas.
Gustavo chupou o suco
pelo canudo e voltou ao tema anterior.
- Tu já decidiu se vai
participar do torneio desse ano.
- Dessa vez vou ficar
de juiz. Não quero me gabar, mas pra mim já perdeu a graça roubar doce de
criança. Eu tenho o clube e a internet, lá eu posso jogar pra valer.
Os professores ainda
chegavam. Rogério, ao passar por eles, fez um gracejo:
- Ué, vieram participar
da reunião?
Nando, que terminava o
refri, respondeu.
- Estávamos na
biblioteca estudando. – E sorriu com um leve tom irônico: – Um pardal nos disse
que as provas dessa vez serão mais difíceis.
Rogério também sorriu,
talvez porque percebera a insinuação de Nando ao apelido de Professor Pardal
que a turma, com divertimento e carinho, lhe dera no início do ano.
Antes de sair, Rogério
disse:
- Ontem de noite pensei
em vocês.
- Que pena! – disse
Nando com vivacidade. – Então as vibrações que eu senti antes de dormir não
eram da Bárbara nem da Katchusca.
- Engraçadinho! – disse
Rogério com bom humor. – Ontem saiu na tevê a notícia de outra quadrilha
mineira. Eles adulteravam o queijo e mudavam a embalagem com a data de validade
vencida. Pior era o que faziam com o leite, misturavam bicarbonato de sódio e
soda cáustica pra encobrir a acidez. São uns delinquentes.
Gustavo, que terminara
o quindim, lembrou o outro dia.
- Era o que nós te
dizíamos, Róger. Queríamos fazer um teste com o leite de uma cooperativa da
Barra do Ribeiro. Teve até uma denúncia anônima...
- Eu sei, eu sei. – E
num tom de alerta: - Mas é muito perigoso, a polícia é que deve cuidar disso. A
quadrilha de Minas tiroteou com a Federal e um deles morreu. E o caso de Barra
do Ribeiro é ainda mais cabeludo, porque essa cooperativa é de um deputado
estadual. Quem está na frente do negócio é um testa de ferro. Também li a
matéria sobre a denúncia, a polícia tem que estar bem armada de provas pra
meter a mão neles, é um vespeiro!
- Mas o delegado disse
que a denúncia era falsa.
- Pode ser despiste –
dizia Rogério olhando para Gustavo –, não querem levantar a lebre. É comum a
polícia largar pistas falsas através da mídia. – Olhou o seu relógio de pulso.
– Eu já vou, espero que não estejam mais com ideias sherlockeanas. Valeu?
Nando jogou a pelota de
papel no copo de plástico:
- Que é isso, Roy
Rogers? A gente passou dessa, o nosso tempo tá sendo todo dirigido para as
provas. Vai com Deus!
Os dois ficaram rindo
enquanto Rogério, pegando carona com um professor, seguiu para a sala da
reunião. O Luiz veio até a mesa e recolheu a garrafa, o copo de Gustavo e os
papéis.
Em seguida, Neusa
cruzou por eles.
- E aí, como vai essa
cabeça?
- Joia! Em cima do
pescoço!
- Bobalhão!
Ela passou e eles
ficaram rindo.
- O esconderijo tá
livre – disse Nando. – Mais um pouco e podemos assumir o nosso posto, marujo.
Logo a seguir o Luiz cruzou
por eles e deu tchau. Ao fundo, tia Zilá vinha já com a roupa de sair,
cumprimentou o Seu Zé, que se dirigia para a guarita no portão de entrada, acendeu as luzes do corredor e do saguão e
tomou o caminho da rua.
Gustavo olhou Nando com
apreensão.
- E a Kati, será que
desistiu?
Nando espalmou as mãos:
- Não sei, liga pra
ela.
Gustavo pegou o celular
na pochete, onde também estava o vidro com a amostra do leite, e ligou.
Segundos depois tocou o
celular no bolso de Nando. Gustavo se surpreendeu ao ver a expressão pícara do
amigo. Nando, com os dentes todos à mostra, tirou o celular do bolso, abriu o
visor e o estendeu para Gustavo olhar.
Gustavo custou a
acreditar, em especial no que estava escrito no visor do celular aberto por
Nando: “Lírio Branco”.
- Cretino!
Nando fechou o celular:
- Que outro argumento
eu tinha pra te convencer a vir? Quando tu não quis entrar na biblioteca, achei
que tu tava começando a desistir. Então tratei de me calçar!
Com um misto de raiva,
censura e resignação, Gustavo disparou:
- Quer dizer que a Kati
não sabe?
Nando, guardando o
celular no bolso da jaqueta:
- Vamos dizer que ela
esqueceu o celular na sala de aula e que um anjo da guarda, que não queria
correr o risco de ser flagrado em gambito do rei, pegou emprestado pra entregar
amanhã.
A biblioteca ficava na
ala oposto à reunião dos professores, depois de diversas salas de aula em ambos
os lados do corredor. A chave girou sem problemas na mão de Nando. Entraram na
penumbra que cheirava à madeira e resina. Gustavo respirou com alívio, era mais
uma etapa vencida, dessa vez não haveria cabeças rachadas. Escolheram o fundo da
biblioteca para esperar, em torno de uma das mesas largas e compridas de mogno.
Gustavo, conforme
sentou, apoiou o queixo nos punhos fechados e superpostos.
- Trouxe o resto?
Nando apoiou um braço
no outro:
- Tudo: canivete suíço,
chave de fenda, fita crepe, fio de arame, chave mixa, pua, o escambau!
A preocupação de
Gustavo, uma vez que o laboratório não tinha chave, era com os armários dos
instrumentos e produtos químicos. Aí deveriam por à prova toda sua perícia e
habilidade para vencer os ferrolhos sem fazer ruídos nem danos.
Depois de alguns
minutos rolando troncos e batendo braços e mãos na mesa, resolveram ir para o
chão. Nando encostou-se contra o armário-balcão auxiliar e abraçou os joelhos.
Gustavo apanhou de uma estante dois grossos volumes de capa mole, “História
Social da Literatura e da Arte”, de Arnold Hauser, tirou os tênis com os pés e
se deitou no chão ao comprido.
- Que desculpa tu deu
em casa? – disse Nando em voz baixa.
- Que ia dormir na tua
casa. E tu?
- Que ia dormir na tua
casa.
Os dois riram pela
garganta.
- Tu não tem vergonha
de mentir? – disse Gustavo.
- Ué, e por que teria?
Às vezes a mentira é a verdade pelo avesso.
Já era noite fechada. A
massa de livros diante de Gustavo num certo momento desapareceu, para em
seguida ser recuperada pela luz de fora.
- Eu não sei mentir. O
lance com a Neusa me deixou mal.
- Eu sei!... Tu fica
vermelho.
- Eu tenho medo, sempre
acho que vão descobrir.
- Guto, a mentira não é
apenas uma questão moral, é também questão de sobrevivência. Não somos apenas nós
que mentimos. O camaleão muda de cor pra enganar seu predador, as aves se
camuflam pra atrair o parceiro, os chimpanzés blefam em suas táticas de caça e
ataque de guerra. – E sorrindo num tom de pirraça: - E o homem sublimou a
mentira: inventou o xadrez! Todos, pelo menos uma vez na vida, tentam parecer o
que não são.
Pelo corredor, chegavam
as vozes dos professores. Era possível identificar o nome de algum aluno. Da
rua, se alteravam o silvo de um vigia e a buzina dos automóveis.
- Olha esses livros em
volta de nós – voltou Nando depois de um breve silêncio. – Bom, estão todos no
escuro, mas dá pra imaginar... Quanto de erro, engano e mentira têm neles? – E
depois de sorrir no tom anterior: - Ninguém sobrevive dizendo só a verdade, meu.
Até porque, escuta, a verdade de um pode prejudicar o outro.
A cidade parecia se
encaminhar para um retiro espiritual, como se todos fossem sonhar com a próxima
estação. As pálpebras de Gustavo começaram a pesar, a vista atraída por apenas
algumas lombadas claras e brilhantes feito estrelas num céu noturno.
Nando se levantou:
- Acho que vou ler
alguma coisa.
Ele caminhou por entre
as fileiras de estantes, direto como se soubesse o que procurava. A borracha
dos tênis emitia um som agradável e constante, como se a biblioteca estivesse
mascando chiclete de boca aberta. Em seguida, do recanto onde Nando
desapareceu, surgiu uma luz pequena e suave, durou apenas alguns segundos e
apagou. Gustavo ouviu mais uma vez o som de framboesa, difuso, como se um balão
começasse a inflar e já fosse carregá-lo para fora da terra. Como se... Adormeceu.
Acordou com as risadas
dos professores, já fora do colégio. Despediam-se, davam tchau para o Seu Zé e o Barão. Em seguida,
algumas portas bateram, motores roncaram e partiram. Da calçada chegavam as
vozes dos professores que se encaminhavam para o ponto de ônibus, afastavam-se
com vagar, diminuíam.
Nando, com a
lanterninha apoiada numa pilha de livros, lia na mesa.
- O que tu tá lendo?
- “Meus Grandes
Predecessores”, do Kasparov. Ele conta a história dos doze campeões que vieram
antes dele. Alucinante!
- Cara, tu vai ficar
louco.
- Eu já enlouqueci!
Em seguida puseram os
livros no lugar. Gustavo calçou os tênis e foram até a porta. Tomando água,
divertiam-se com o barulho das bolhas de ar na bombona, um raro escafandro a cruzar
o leito de um mar noturno. Deixaram a biblioteca para trás, como se saíssem de
um oásis no deserto e fossem enfrentar o frio e a tempestade de areia nas
sombras. A noite, que dessa vez tinha o nome de Seu Zé, já apagara as luzes do
corredor e do saguão. Liberara as sombras e umas doses de medo e adrenalina.
Venceram alguns metros, na ponta dos pés, e logo encontraram a porta do
laboratório. Abriram, entraram, fecharam. Aqui o escuro parecia ainda maior, a
peça tinha todas as cortinas descidas.
Assim que seus olhos se
acostumaram ao ambiente, foram para os armários ao fundo. De dentro da mochila,
Nando retirou os biscoitos do Barão e os apetrechos para abrir os ferrolhos,
colocou tudo em cima da longa mesa de fórmica. Em seguida tiraram as jaquetas e
as deitaram no chão, ao pé dos armários, para evitar o som de alguma queda
inesperada do material. Começaram pelo armário dos instrumentos. Nando atacou
de arame e chave micha. Gustavo focava a luz da lanterna. Fuçou de todos os
modos, sem conseguir mover a lingueta.
- É pior do que eu
pensava – disse Nando.
Ele pegou o canivete
suíço e experimentou os acessórios mais apropriados para a tarefa. O resultado
foi igualmente nulo. Já suava na testa. Entre a coroa da fechadura e a madeira
havia uma pequena fenda.
- Vou estourar essa
droga.
Nando pegou a pua e a
enfiou na fenda. A coroa saltou do lugar e foi cair no chão, fora das jaquetas,
com um barulho de arruela a picar pelo chão.
- Droga! – disse ele. –
Eu tinha que ter prendido com a fita crepe.
Gustavo pegou o rolo e
o entregou para Nando, que logo cobriu o ferrolho com tiras de fita em cruz. Nando,
com a respiração já bastante alterada, foi furando, rasgando, esgarçando a
madeira em todo comprimento da fechadura.
Num dado momento, parou
para tomar fôlego. Limpou o suor da testa e disse numa alusão à pedra do
xadrez:
- O “L” do cavalo é
muito mais fácil, cara.
Gustavo, já
horrorizado, pensava no escândalo a cruzar em diagonal os papos na hora do
recreio. Pipocaria na sala do diretor.
- Que preju – disse
ele.
Mal falou isso, depois
de esbagaçar toda a madeira à direita do ferrolho, Nando destravou a porta do
armário.
Uma luz acendeu na
mente de Gustavo:
- Cara, teria sido
muito mais fácil se tu tivesse atacado a lingueta.
- Agora já foi. Na
próxima vez pensa mais cedo.
A seguir, tiraram do
armário os instrumentos para o teste: a pipeta, o copo Becker, a balança, as colherinhas.
Assim que arrumaram
tudo no balcão, Nando disse:
- Meu, tô apertado,
preciso ir no banheiro.
- Agora?!
- É batata, sempre
acontece quando fico muito tempo lendo. Eu já tinha tomado outro guaraná antes da
tua chegada. Vou e volto rapidinho. – Ao deixar o laboratório, sussurrou: - A
luz tá fraca, fica no escuro.
Gustavo desligou a
lanterna.
Nando foi até o
banheiro, aliviou-se, lavou as mãos e o rosto, passou no pescoço uma toalhinha
improvisada de papel higiênico. Mas ao deixar o banheiro... o rosnar do Barão!
O cão vinha pelo corredor escuro. Os biscoitos! Tinha os deixado na mesa do
laboratório.
O Barão latiu duas
vezes. A única saída era correr para lá. O cão já estava bem próximo quando
entrou e encostou a porta.
Pela fresta, disse em
voz baixa:
- Barão, Barãozinho...
– E agachou-se. Passou os dedos junto às fuças dele, na esperança de que o
animal o reconhecesse das vezes em que o acarinhara na casa do Seu Zé.
Gustavo já chegava por
suas costas. Deu-lhe um bloco de biscoitos.
- Toma, Barão... –
disse Nando passando três deles pelo vão da porta.
A pouca ferocidade no
animal desapareceu. Nando espichou mais uma vez o braço e acarinhou a cabeçorra
do Barão.
Mal terminaram aqueles,
o cão, ganindo, pediu mais. Gustavo, temendo a chegada do Seu Zé, jogou por
sobre a cabeça de Nando mais um biscoito para o Barão:
- Agora passa... Vai,
vai, vai...
Nando arriscou um
carinho no focinho do animal e fecharam a porta. Barão ainda ficou ali um
instante. Ganiu, farejou pelo vão inferior da porta, arranhou-a. Por fim, latiu
três vezes. Gustavo e Nando paralisaram. Durante um longo minuto, em que Barão
farejou outra vez, arranhou e ganiu, ficaram sem fazer nenhum movimento, a não
ser respirar, mais alto do que Gustavo gostaria.
Barão afinal desistiu e
se foi pelo corredor. As ciscadas de seu trote diminuíam suavemente, até
desaparecerem por completo.
Aliviados, Gustavo e
Nando voltaram para o fundo do laboratório. Ali ficaram um longo instante sem
ação, à espera do menor sinal que anunciasse a vinda do Seu Zé. Nando apanhou
sua jaqueta do chão, ao pé do armário dos instrumentos, e a vestiu lentamente.
Gustavo fez o mesmo com a sua, embora estivesse molhado de suor. Enfiaram todo
o material de trabalho na mochila e aguardaram.
Nada do Seu Zé.
Aliviados, voltaram-se
para o armário dos produtos. Por sorte, ou por alguma forma misteriosa de
compensação do destino, essa fechadura, por ser mais antiga que a anterior, praticamente
não ofereceu resistência. Em poucos minutos, Gustavo, iluminado por Nando,
abriu a porta que franqueava o acesso aos pós salvadores.
- Aleluia – murmurou.
Guardaram mais uma vez
os materiais na mochila, tiraram das prateleiras os produtos para o teste e
armaram o circo na mesa de fórmica. Gustavo, como se retirasse das próprias
entranhas o elixir sagrado de um deus, abriu a pochete e agarrou o vidro com a
amostra da Leite da Barra. Nando pegou no bolso da jaqueta o papel com as
instruções, abriu-o na mesa e deram início à parte mais delicada e essencial do
plano. Era o desejo de reconquista de uma imagem, milimetricamente dosado.
Embora já tivessem
perdido toda noção de tempo, andavam rápido. Às vezes ouviam o ganido impaciente
do Barão. Suas patas em seguida arranhavam a porta. Farejava, farejava. Um
deles tinha de ir até lá dar o biscoito para aquietá-lo, que fosse embora.
Quando Gustavo despejou
o leite num dos Becker, acabou a luz.
- Merda!
Nando ligava e
desligava a lanterna. A cada vez surgia apenas uma luzinha muito fraquinha, que
logo se extinguia. Até que não deu mais nenhum sinal de vida.
Ficaram de novo paralisados,
em silêncio.
- Não tem jeito, vamos
ter que acender uma luz – disse Nando.
- Que luz?
- Aí tá o problema. As
do teto vão iluminar todo o quarteirão.
O Seu Zé, na guarita como
de hábito, ouvia o radinho de pilha, sintonizado no seu programa preferido: Não
diga não à Itaí. Nesses momentos de tortura, o entrevistado engasgando-se para
evitar a palavrinha maldita, podiam levar todo o colégio de assalto, ele não daria
fé. Tinha dó dos ouvintes que se arriscavam no teste, com a impressão de ele
mesmo sair-se melhor. Era muito divertido tentar uma resposta. E complicado,
porque ele também se embananava com as perguntas do apresentador, cheias de
veneno. Às vezes ele dizia “não” antes mesmo do próprio desafiado. A bexiga em outras
ocasiões ficava a ponto de explodir, não conseguia abandonar o posto enquanto o
drama não se resolvesse, pois caminhar com o radinho colado no ouvido era ainda
mais desesperador, a sintonia chicoteada a cada passo. Aí, era a sua vez de
responder: “Diz não, criatura!”.
Nessa noite, um raio
caiu à esquerda do colégio, com um estrondo medonho. Quando Seu Zé, assustado,
olhou para a direção de onde vinha o corisco, notou uma luz fraquinha na janela
dos fundos do laboratório. Algum aluno ou o professor Rogério tinha esquecido,
mais uma vez, o microscópio aceso. Pensando melhor, era fraca, mas era muito
forte para ser a do aparelho. “Não!” Hê, hê, hê! Não devia ser a do
microscópio, e sim a luz auxiliar do tanque perto da janela. Logo, ao terminar
o seu programinha, ia fazer a ronda e apagar essa luz.
Quando deixou a
guarita, o Barão veio mais uma vez até seus pés. Nessa noite andava muito
inquieto, entrava e saía feito uma chispa pela sua portinha e vinha saracotear junto
dele. Já bebera litros de água na sua tigelinha, e o bicho não parava de
salivar.
Mal o Seu Zé fez menção
de se dirigir para a porta de entrada do colégio, o Barão deu uma pirueta, correu
e mergulhou na portinha, que ficou abanando feito leque de beata bem beata.
Ele entrou no saguão do
colégio.
O Barão o aguardava no
início do corredor: a mancha branca, a cobrir metade do corpo do Barão,
destacava-se do pretume da outra parte e do resto em volta. Com a chegada da
chuva, o breu do corredor por onde o cão já se enfiava ficara ainda mais escuro.
Curiosamente, como se
estivesse farejando a luzinha, o Barão foi até a porta do laboratório e ficou
ali, numa agitação só. Não era comum essa rebuliço todo. Gania, arranhava a
porta. Hoje estava mesmo impossível. E ainda latia. Latia. O eco dos latidos
preenchia o corredor todo, ia e voltava, ribombando.
- Sossega, Barão!
Quando o Seu Zé foi
entrar no banheiro, o cão voltou-se para ele e latiu de maneira frenética,
bateu as patas no chão, imperial, e voltou-se para a porta do laboratório. Não,
aquilo não era normal, ele disse para si mesmo. Uma onda de frio cobriu seu
corpo. E a vontade de mijar passou num instante. Ele então se aproximou da
porta, a passo lento. Conforme chegava mais perto, o Barão se agitava ainda
mais. Gania, fungava. Latiu três vezes.
Seu Zé parou diante da
porta. E levou a mão ao revólver, mais por ordem da mente do que por vontade
própria. Devia obedecer essa ordem interior, a força de comando tão sua conhecida,
e seguir adiante. Era o seu dever, para isso recebia o salário e a casinha nos
fundos para ele e a família. Mas não queria. Não conseguia vencer a outra força
que o aconselhava a voltar atrás e esperar, esperar. Quem sabe até buscar
ajuda.
Nisso, a porta se abriu
e o Seu Zé congelou.
Logo a seguir, pelo vão
inferior da porta, surgiu a mão com o biscoito. E uma voz de garoto, que dizia
em surdina por trás dela: “Calma, Barãozinho... É o último, hein.” Conforme
disse isso, a mão soltou o biscoito, acarinhou o barão e se recolheu. E a porta
se fechou.
A fraca luz do interior
do laboratório e o ribombar de um novo trovão lá fora, que fez a realidade toda
tremer em sua volta, davam a isso um aspecto de bruxaria.
Barão, ganindo, farejou
o biscoito. Antes de atacá-lo olhou para cima, em busca do Seu Zé, de sua
aprovação para mais esse privilégio indevido.
Mas o Seu Zé já estava
com a cabeça no diretor, no professor Rogério, na polícia, nas nuvens. Esperou
mais um tempo, controlando a respiração que voltava acelerada por uma nova onda
de suor, e concluiu tratar-se de algum aluno, de algum casalzinho fazendo
besteira, como já flagrara outra vez. Não, não era preciso sacar o revólver.
Abriu lentamente a
porta e espiou. Dois garotos, possivelmente alunos – ainda não conseguia
identificar as fisionomias – cercados por três velas brancas, cochichavam com entusiasmo
e alegria – sim, era possível ver que estavam felizes – em torno daqueles
vidrinhos do professor Rogério. Uma experiência, numa hora dessas, não podia
ser coisa boa.
Quando o Seu Zé acendeu
a luz, os dois gritaram ao mesmo tempo, de pavor.
*
O inverno chegou com
uma saraivada de granizo, bastante incomum nessa época do ano. O trânsito
estava todo parado, também algo novo nos últimos tempos, quando a venda de
automóveis atingia recorde acima de recorde. Isso, mais a chuva iminente, davam
à cidade um aspecto sombrio e agonizante de um parque de diversões desligado no
finalzinho da tarde. Era de manhã, e as pedrinhas brancas batiam nas calçadas
feito bolinhas de naftalina.
No entanto, Gustavo se
arrastava para o colégio feito um presidiário que, voluntariamente, se
dirigisse para a penitenciária onde cumpriria pena. Mas no bolso levava o
resultado de sua última pesquisa na internet como se fosse um salvo-conduto.
O diretor do colégio,
com olhar severo e vigilante, fitava alternadamente Nando e ele. O professor
Rogério, com ar de constrangimento e comiseração, estava de pé ao lado da mesa,
entre eles e o diretor. Os pais viriam de tarde. Antes o diretor queria uma
conversa franca e direta, para saber deles como e por que tinha acontecido aquela
absurda invasão da noite passada,
como disse o diretor. O seu ar de cansaço e irritação, com fundas olheiras, por
certo se devia ao chamado de Seu Zé no meio da madrugada.
Era o diretor quem falava
nesse momento, o olhar cortando até a alma:
- Mas afinal, o que
vocês pretendiam com essa loucura?
Os dois ficaram em
silêncio, a respiração tensa e profunda. Gustavo levantou os olhos para Nando.
O amigo tinha o olhar na ponta dos pés, mordia o lábio inferior, as bochechas
levemente ruborizadas. Hesitante, Nando tomou a iniciativa:
- Provar o batizado do
leite...
- O que?!
- O leite tem sido
adil... adulterado, diretor. Isso é crime, todo mundo sabe. Ninguém tem o
direito de fazer isso, o senhor sabe diretor. – Nando falava num tom baixo. Mexendo
no cadarço do tênis, olhava o diretor apenas por poucos segundos. – Nós já
tínhamos falado disso com o professor, né Róger?... Então! Isso saiu outro dia
na tevê, um delegado até fez despiste. O Rogério acha que é porque a Leite da Barra,
a cooperativa que anda batizando o leite, imagine só, é de um deputado federal.
O Químico também sabe disso, foi ele...
- Que químico?!
- O site que nos deu os
nomes dos produtos pro teste, diretor. Eles também estão sabendo. – Rogério
grunhiu algo. Nando levantou um pouco o tom de voz: - Poxa, tá na internet,
todo mundo tá sabendo.
O diretor balançou a
cabeça para os lados, os olhos fuzilando:
- Isso não dá direito a
ninguém pra invadir laboratórios de química pela cidade!
Nando inclinou o corpo
para frente, baixou um pouco a cabeça e mostrou a palma das mãos:
- Não foi na cidade...
foi só no colégio. O senhor precisa ver que tem aí o interesse do povo. – E de
voz cheia, sublinhou com um tom mais alto as duas últimas palavras: - Ninguém
gosta de beber leite com soda cáustica.
Gustavo retirou o papel
do bolso:
- Leite sintético é cancerígeno. –
Quando o diretor fixou nele um olhar de espanto, Gustavo leu: – “Uréia e soda cáustica são prejudiciais ao
fígado, coração e rins. Soda cáustica, que contém sódio, atua como veneno
lento para os que sofrem de hipertensão e doenças cardíacas.” Diretor, tudo
isso está no leite sintético, e alguns desses produtos, nós confirmamos, estão
na caixinha da Leite da Barra. – E voltou a ler: – “A soda cáustica também
priva o corpo de utilizar lisina, um aminoácido essencial no leite, o que é
exigido por bebês no útero, tornando-o perigoso para mulheres grávidas e fetos.
Detergentes prejudicam a capacidade reprodutiva masculina e deformam o esperma,
além de dar intoxicação alimentar, problemas no sistema gastrointestinal, tais
como dor, vômitos, diarréia e dor abdominal.”
O diretor deu uma
palmada na mesa e olhou para Rogério.
- Eu não sabia que
tínhamos uma dupla de detetives no colégio. A dupla dinâmica! – E olhando
alternadamente, mais para Nando: - Isso é caso de polícia, ninguém aqui tem
autoridade para investigar por conta própria, nenhum de nós. Já nem falo dos
produtos usados e da porta do armário quebrada. Essa conta vou apresentar aos seus
pais. Vocês cometeram invasão de propriedade. Se o vigia não fosse um homem
calmo, como o Seu Zé, metia uma bala em cada um! E se ele tivesse chamado a
polícia? Já pensaram onde estariam agora? No necrotério! Ou no xadrez, Seu
Nando!
Rogério, numa voz de
urgência súplice, pediu:
- Levantem a cabeça.
O diretor dividiu o
olhar entre os dois:
- Olhem pra mim. Não
estamos aqui para humilhar. Vocês são inteligentes para compreender a besteira
que fizeram. E ainda são bastante jovens. A vida vai dar algumas oportunidades
de se recuperarem, esperamos que vocês aproveitem.
Em seguida, o diretor
levantou da mesa uma folha de papel em cada mão:
- Temos aqui outro
probleminha. – E as agitou brevemente no ar. A seguir largou-as na mesa e veio
para a frente, apoiando-se nos braços: – São os boletins de vocês. – Gustavo
sentiu um longo tremor subindo das entranhas. O diretor continuou, agora num
tom levemente irônico. – Que fenômeno espantoso, meus amigos. Vocês talvez não
saibam, mas posso dizer como a personagem de um antigo seriado de aventuras: Santa
Coincidência! – E estendendo os boletins para Nando: – Olhem!
Nando estendeu um braço
tímido e pegou as folhas com as notas deles. Encurvado, trouxe-as abertas para
cima das coxas e passeou o olhar perdido entre ambas, as bochechas rubras.
Mordia, lambia os lábios. A seguir, entregou os boletins a Gustavo. Ele olhou
um e outro sem ver nada. Sentia o rosto queimar, temendo que já fosse
desaparecer em baixo da mesa. Devolveu as folhas para o diretor.
- Que me dizem?
Os dois ficaram outra
vez num longo e pesado silêncio.
- Que acham disso? –
voltou o diretor, mais alto.
- B-boas notas... –
gaguejou Gustavo Gustaióvski.
O diretor pôs nele um
olhar ferino, e num tom mordaz:
- Só isso? – Eles
permaneceram em silêncio. – Qual é a explicação para essa Santíssima Duplicidade?
Eu também acredito no acaso, mas ele seria assim tão farto e caprichoso, tão
concentrado? O acaso se caracteriza justamente por ser um evento raro, quando
não único, e em geral sem explicação lógica, justamente porque não obedece à
racionalidade. Mas o que obtivemos aqui, minha gente, em termos de acaso, é um
acontecimento que beira o paranormal, ou a magia, para não cometer o sacrilégio
de dizer que se trata de um evento sagrado. No caso de vocês, consagrado. Eu
imagino que tenham uma boa explicação para tudo isso.
Gustavo, enquanto o
diretor falava de modo a quase provocar risos, olhara para Nando. O amigo
passeava o olhar pelos troféus na prateleira atrás do diretor, de conquistas do
colégio em diversas modalidades esportivas. Ele mesmo, sem conseguir olhar
diretamente o diretor, puxava para baixo a bainha da jaqueta, olhava o verniz
arranhado do mocassim preto do diretor, que aparecia por baixo da mesa.
Quando o diretor parou
de falar, Gustavo olhou para Rogério.
Rogério balançou a
cabeça assertivamente, num sinal para que dissessem a verdade. Aquilo desceu
feito estilete mente, peito abaixo. Mas pensou, que a exemplo da outra vez,
talvez o destino buscasse de novo uma forma de compensação. E de compensação do
próprio destino, já que da outra vez o resultado fora completamente negativo. Agora,
a tomar pela expressão segura e confiante de Rogério, o grave erro da noite
passada, caso confessassem o sistema de cola com os pés, de alguma forma
aliviaria a punição que fatalmente receberiam. E talvez ainda recuperassem junto
ao diretor e aos outros um pouco do cartaz perdido.
Ele tomou novo fôlego e
disse numa voz baixa e monocórdia, com enorme esforço para olhar nos olhos do
diretor:
- Desenvolvemos uma
técnica nova de estudo, né Nando?... O senhor pode não acreditar, mas deu muito
trabalho, nos forçou a estudar... Cada um estuda mais as matérias, porque cada
um tem mais dificuldade em certas matérias, o senhor entende? Daí a importância
do modelo, essa nova técnica de estudar, de melhorar o rendimento... Não é o
que os professores sempre buscam?... A gente assim vai superando as
dificuldades que cada um tem com a matéria, e vai aprendendo mais, e dividindo
esse conhecimento. Até uma afinação completa. Assim as boas notas aparecem,
acaba sendo natural.
- Compreendi – disse o
diretor erguendo as sobrancelhas. E balançando a cabeça: - É o Leite da Barra
de vocês!
Rogério sorriu. Nando
olhou para Gustavo com um olhar de surpresa e aprovação.
O diretor retomou a
palavra, com a mesma ironia sutil.
- Mas vocês não
explicaram como é esse método novo, como põem em prática o modelo, como é essa afinação... o esquema, entende?
Nando não se conteve:
- Com os pés.
O diretor levou o
tronco para trás, como se tivesse recebido um bafo de leão.
- Com os pés? Vocês
estão me dizendo que desenvolveram um sistema de cola com os pés? Não é
escrito? Não é espiando a prova do vizinho? Não é com aparelho de voz e
audição, não? É com os pés!? E vocês querem que eu acredite nisso? É código
Morse, ou quem sabe é um batuque, ficam sapateando no fundo da sala, é isso?
- Mais ou menos,
diretor – disse Nando. – Vamos dizer que nós desenvolvemos um código, um
sistema de sinais, o senhor entende?... E por aí vai o nosso estudo, as
perguntas, as respostas, os acertos das provas... Professor, o senhor é uma
pessoa inteligente, pode compreender, aceitar isso. É uma novidade... É
isso!... Não dá pra negar que é uma coisa nova.
A temperatura, naquele
sistema fechado de agentes, troféus e boletins estava subindo, e ali ninguém
estava mais apto para reduzir o seu grau do que o professor de Química.
- Diretor Arlindo, pra
mim ficou muito claro, estamos diante de mais um caso de cola. A singularidade
aqui é o método, mas o resultado é o mesmo. Sabemos de vários casos de cola, e
como não dá para formar a prova posteriormente, os alunos acabam ficando com as
notas alcançadas. Acho que com eles não poderia ser diferente. Se entendi bem,
pelo menos eles estudam a fundo algumas matérias, o que acaba sendo benéfico e
até raro, porque boa parte dos alunos sequer estuda, apenas faz esquemas para
as provas. Eu acho que aquela sua ideia de suspensão por uma semana seria bem
adequada. Eles vão para casa, refletem nas bobagens que têm feito e estudam
para as provas trimestrais, não é mesmo?
Os dois concordaram com
a cabeça, vivamente.
- Os outros professores
com quem discutimos o caso também concordaram – voltou o professor Rogério. – E
a vergonha diante da turma, que com certeza dessa eles não escapam, já será
outra maneira bastante eficaz de reparar o erro. Essa é a minha posição.
Mas o diretor, como se
viu a seguir, não estava satisfeito.
- A estupidez de ontem
à noite, somada com as notas desses boletins, são suficientes para expulsar os
dois. Nando, foste a glória do nosso colégio. Em consideração a isso, vou
aceitar o conselho de emergência, vocês estão suspensos por uma semana. Mas
acrescento mais uma nota: terminado este trimestre vocês estarão fora daqui.
Não vamos expulsá-los para não os prejudicar, mas desde agora vocês já podem se
considerar ex-alunos e procurar outro colégio. A decisão é irrevogável.
Antes de deixarem a
sala, o professor Rogério lhes disse:
- Vão para o
laboratório e me esperem lá.
Eles, nos bancos ao
fundo do laboratório, olhavam as marcas nas portas dos armários. Com a pouca
luz da lanterna e das velas, e em especial devido à tensão do momento, não tinham
ideia do tamanho do estrago.
Comentavam sobre os
ferrolhos inutilizados, quanto custaria toda a aventura, quando o professor
Rogério falou atrás deles.
- Qual de vocês é o
Gato Preto?
- Eu – disse Nando.
- Se eu soubesse que ia
dar nisso – disse Rogério, – não teria respondido os e-mails do O Químico.
O administrador do
site, colega de formatura de Rogério, pedira a este que respondesse aos e-mails
mandados por Nando com aquele pseudônimo. Quando outro dia sugeriram fazer o
teste na aula de laboratório, pensou que se tratasse de mais um caso de
curiosidade em torno do assunto. Pois a mídia tinha tratado recentemente das
prisões de quadrilhas em Minas e Goiás, e ele mesmo já acessara um site
norte-americano que abordava o tema do leite sintético na Índia.
Rogério lamentou
vivamente o desfecho do caso. Se soubesse que a determinação deles fosse
levá-los a tamanho desatino, teria colaborado. Também se sentia um pouco responsável
pelo resultado, e por isso gostaria de fazer algo por eles. Mas não tinha a
mínima esperança de obter sucesso, porque o diretor, quando chegava a esse
extremo, não havia quem o fizesse mudar de ideia.
Rogério passou por eles
e foi até o armário dos produtos, abriu a porta, apanhou os vasos com os testes
da noite passada e os largou na mesa de fórmica.
- Parabéns! – Olhou
para ambos, alternada e detidamente, com um sorriso de grande satisfação.
Gustavo viu nele até uma pontinha de orgulho. – Bicarbonato de sódio e soda
cáustica!... Perfeito!
Seriam os novos
apelidos?
O comentário do
professor deixou-os mais animados. Gustavo reconheceu, os seus métodos não eram
os melhores, mas os resultados provavam o caminho certo.
- Vocês não acham que
estão pagando um preço alto demais?
- O nosso trabalho
ainda não terminou – disse Gustavo. – Vamos até o fim.
Rogério fez uma
expressão de surpresa:
- Vocês estão loucos,
se pensam que vão entrar numa guerra dessas sem levar chumbo. O que vocês
receberam hoje é bala de festim, perto do que vão provocar se seguirem adiante.
Esqueçam qualquer ideia de herói. Vocês devem estar arrasados, eu sei, não é
nada fácil suportar o que estão passando. Mas precisam aprender com isso, será
uma experiência muito valiosa pro resto da vida de vocês. Seguir pelo caminho
errado será burrice! Vocês precisam amadurecer.
Nando pegou o Becker
com o teste para a soda cáustica:
- Isso aqui foi o nosso
batismo de fogo, Róger. No ponto em que estamos, não tem mais volta. Já é muita
vergonha, muita humilhação...
- Ninguém humilhou
vocês, vocês é que se meteram nessa enrascada.
- Nós vamos sair dessa!
– disse Gustavo num tom agressivo e mais alto do que gostaria. E baixando o
tom: – Róger, ninguém vai nos levar a sério, não vão dar ouvidos a nada do que
a gente falar daqui pra frente. Você sabe o que é isso? Eu já virei o Lírio
Branco, é só do que vão me chamar. E o Nandorov? Cara, ele simplesmente empatou
uma partida com o Garry Kasparov, só isso! Foi a sensação do colégio durante
três meses, colocou o nosso departamento no circuito gaúcho e brasileiro de
xadrez. É pouco? Quando o colégio inteiro souber dessa jogada maluca de ontem,
vão chamar ele de quê? De Dama da Noite ou algo assim, porque o que não falta
pra eles é imaginação maliciosa. Já
pensou que lindo! Vão dizer que é a partida de abertura dos Jogos da Primavera:
Dama da Noite x Lírio Branco. Não dá, né?
Nando interrompeu
Gustavo:
- Meu, a coisa é tão
pesada que a gente até achou uma boa essa semana invisível. É tudo do que nós
precisamos: desaparecer, enfiar cabeça, tronco e membros no fundo da terra. E
por sorte vem as provas em cima, é assinalar as respostas e cair fora. Duas
semanas garantidas de silêncio.
Por fim, Rogério falou num
tom de resignação:
- E o que vocês vão
fazer?
- Vamos levar os testes
até uma delegacia, fazer denúncia com prova.
Rogério, depois de um
breve silêncio, sugeriu:
- Querem que eu
acompanhe vocês?
- Obrigado – disse
Gustavo. – Mas a parada é nossa, precisamos provar pra nós mesmos que podemos
sair dessa pelas próprias mãos.
- Qualquer coisa a
gente te liga – disse Nando.
Rogério deu-lhes os frascos para acondicionarem os testes.
Rogério deu-lhes os frascos para acondicionarem os testes.
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