Conto

Conto integral do volume O Juiz e o Papagaio,
finalista do Prêmio Açorianos, 2010
na categoria Criação Literária






Gordo, eu vou te matar!




                                             


"Mata-me, e meus parentes te matarão;
    come meu corpo e estarás comendo
                 teus parentes que eu comi."
                          Prisioneiro Tupi






      Se o garanhão Montecristo não tivesse cruzado o disco final em primeiro lugar, levando seu criador, o Gordo, ao delírio, as consequências trágicas da vitória do Grande Prêmio Brasil certamente teriam sido evitadas. O camarote vitorioso estava mergulhado numa rotunda alegria, quando o sistema de auto-falantes anunciou a desclassificação do Montecristo, assombrando a platéia que ainda ocupava o Hipódromo da Gávea. O informe não esclarecia o motivo, mas sublinhava com um tom grave os princípios esportivos lesados: as circunstâncias da vitória feriam de maneira abominável a nobreza de atitudes, a máxima lealdade e o elevado espírito esportivo que deveriam sempre orientar as competições de turfe –– o afamado esporte dos reis. A argumen­tação fundamentava-se nas regras estabelecidas pela figura exponencial de Admiral Rous, o incorruptível, que já no longínquo 1850 inglês fixara-as em seu notável “Laws and Practice of Horse Racing”, a fim de garantir a lisura nas corridas de cavalo.
      O resultado imediata disso foi não apenas transferir o estupendo prêmio de 15.000.000 da época para o segundo colocado, o garanhão Ortile, mas igualmente estabelecer o descontrole emocional no camarote do Gordo. Exaltado, ele atribuía ao gerente a responsabili­dade pelo ocorrido, não tinha participação alguma nem sabia nada de comprometedor em suas cocheiras, o que quer que fosse era obra de traidores, alguém de sua confiança mancomunado com inimigos e trapaceiros, um vergonhoso exemplo de concorrência desleal. “Os grandes crimes exigem satisfação pública”, defendia-se o empregado com uma ironia desafiadora, “mas os culpados oferecidos à Justiça nem sempre estão à altura de honrá-los”. Então o Gordo, virando-se para o jovem Honorato, gerente de seu haras Thoroughbred (em homenagem aos garanhões orientais, considerados os pais de todos os cavalos de corridas), iniciou uma descompostura em regra. 
      O gerente tentou defender-se das acusações, seguira a orientação do próprio Gordo, mas não conseguiu completar a fala, mal desfiava a linha de seu raciocínio e já o patrão investia para o ataque frontal, culminando sua tréplica num nédio “Beócio falacioso!” que fez suas lustrosas bochechas trepidarem. O outro, com o orgulho espezinhado por cascos de mil puros-sangues, não encontrou saída para a infâmia, a não ser apontar o dedo para o titular do camarote e desferir a jura que ficou célebre nos salões dos jóqueis-clubes brasileiros como a maldição de Honorato:
      –– Gordo, eu vou te matar! –– e abandonou o hipódromo em silêncio.
     A princípio as palavras do Honorato não causaram maior abalo no Gordo. Ele imaginava-se a salvo de qualquer hostilidade do mundo exterior; não passava por sua mente a ideia de que a sentença pudesse ter a ação demorada de alguns ácidos, lentos na queima dos materiais adiposos antes de alcançarem os tecidos mais sensí­veis. Ainda viu a expectativa comprovada nas palavras de sua mulher, que escutou o caso enquanto aprumava um raro gobelino com motivos equinos na parede da sala: “Cão que ladra não morde”, disse ela correndo as mãos pelas margens da tapeçaria. Aí estava o problema, dizia ele, o Honorato fizera apenas o juramento, levan­tara-se e saíra do camarote em silêncio, mal ouvindo sua demissão.
      –– Besteira –– disse a mulher ––, esse Honorato nem raça tem.
    O Gordo passou uma semana tranquila, incomodado apenas por alguns telefonemas de parentes e amigos e pelo assédio dos jornalistas esportivos. A todos explicava que fora vítima de uma traição: nunca imaginara tamanha vilania em seu próprio haras. Mas as providências já tinham sido tomadas, Honorato estava no olho da rua e ele oferecia uma cobertura gratuita do Montecristo para os criadores do Jockey Club Brasileiro, fazia a mesma oferta para os criadores da Sociedade Hípica, se estes assim o desejassem. Além do que, seu secretário particular finalizava uma nota de desculpa à direção do hipódromo, seria distribuída em breve a toda imprensa, afinal a distinta sociedade carioca merecia uma satisfação pelos graves incidentes do domingo. 
     Na outra segunda-feira, ao se dirigir para o setor das baias na Gávea, cruzou por um Honorato silencioso em companhia do Freitas, colega criador e das mesas de jogo no Cassino da Urca. Mais tarde, soube por um dos cocheiros que o doutor Freitas tinha contratado os serviços de seu ex-gerente. Artêmio, o veterinário, confirmou a informação e ainda acrescentou que ouvira no bar do hipódromo o Irigoyen, jóquei do Ortile, dizer que o Honorato andava espalhando aos quatro ventos sua jura de morte. “O Honorato é homem de palavra”, ajuntou o veterinário puxando o êmbolo da seringa. O Gordo, desafogado, riu com sua enorme pança: “Cão que ladra não morde!”. “Mas mete medo”, disse o veterinário inoculando uma dose cavalar no Montecristo. 
      Nessa mesma noite começaram os pesadelos. Honorato, vestido para um Grande Prêmio, empunhando a foice da morte, aparecia montado num possante cavalo negro: “Gordo, é hoje!” Ele estava sempre sentado numa gigantesca almofada de corvim recheada de bolinhas de isopor, e ao sacudir pernas e braços feito uma fabulosa barata branca em decúbito dorsal, afundava-se ainda mais nas protuberâncias do terror. Honorato, deleitado diante de sua agonia, executava-o com a foice. Uma noite, Honorato o encontrou dormindo de perfil num flácido colchão dágua, e, aproximando-se pelas costas, denunciado apenas pelo barulho dos cascos já ecoando no novo sonho, somente cutucou-o com a foice. O Gordo sonhava dentro do sonho com o Montecristo cruzando o disco final em primeiro lugar, as congratulações com os amigos no camarote, o champanhe, as notas na imprensa, as valiosas coberturas e a exportação de seus melhores produtos à Inglaterra para correrem no Derby de Newma­rket. Acordou do segundo sonho com o fio gelado da foice no pescoço, o riso negro de Honorato fazendo borbulhas no interior do colchão. Queria virar-se como que do avesso, mas a resolução balofa morria nos estertores de sua gordura, o riso pelas costas anunciando o corte do fio. Então ele buscou uma última tentativa de evitar que se cumprisse o destino jurado: “Por que, Honorato?” Honorato apenas sorriu. “Fui obrigado a te acusar, não tive escolha”, o suor já irrompia de todos os poros ameaçando afogá-lo, “não consigo entender tua sede de vingança”, e a enorme perna mal subiu para desabar em seguida feito um pernil vacum. Então Honorato falou: “Eu também não tenho escolha, as palavras exigem nossa servidão.” E ajustando o fio entre as dobras do pescoço, comple­tou: “Não se trata apenas de mais um caso de vingança, mas de uma questão de honra. A honra é como uma peça íntima, devemos lavá-la com as próprias mãos, e para tanto é imprescindível o sangue do perjuro.” Foi com grande dificuldade que Honorato venceu a manta de gordura do pescoço até atingir a jugular.
      Na outra semana, sua primeira providência foi transferir o Montecristo para o haras particular em Jacarepaguá. A segunda, com o mapa da cidade na mão, foi inventar tantas alternativas de itinerário quantas fossem possíveis. Ao entrar numa boca de rua, nunca sabia se sairia dela com vida; parar nos sinais, enquanto o juramento girava seu motor em falso, era puro martírio. Os transeuntes nas calçadas significavam ameaças terríveis, os ocupantes dos outros carros eram típicos gangsteres da Lei Seca. O mundo, de um dia para outro, tornara-se hostil, nada mais lembrava a plácida imagem formada na mente com a circular passagem dos anos. Deixou de frequentar os salões de jogos da Urca, onde podia esbanjar notáveis somas de uma herança familiar aparentemente sem fim, despertando certa admiração nas mulheres e a inveja nos amigos; nunca mais parou com os filhos e os netos na esquina da Colombo, em Copacabana, para inofensivas bombas de chocolate entre o mármore das mesas e o intenso brilho dos metais e dos espelhos, a tarde explodida em gargalhadas. Definitivamente, trocou o mar do Leblon pela casa de férias em Petrópolis. Não foi mais ao cinema, ao teatro e aos bailes da Hípica para colher a simpática opinião dos mais próximos e as notas dignificantes de colunistas sociais, valiosas para manter em dia sua boa imagem pública. A cadeira numerada no Maracanã para os jogos da Canarinho, adeus. Adeus também aos passeios nostálgicos a Paquetá, às barcas Rio-Niterói com praia de Icaraí, às casquinhas de siri com caipirinha no Pesqueiro, que, juntamente com o futebol, colaboravam para dar um travo popular à sua imagem de cidadão do mundo. Assim, também nunca mais a feijoada da Praça XV, o Largo da Carioca, a Candelária e os rebolados das meninas sob os sensuais Arcos da Lapa.
    Agora, as excursões ao mundo exterior resumiam-se ao haras e ao Hipódromo da Gávea em tardes de Grande Prêmio, e, ainda assim, escoltado pelo secretário particular e por um parente ou amigo que aceitasse fazer papel de guarda-costas por algumas horas. Fora isso, sob a mais estrita vigilância do carcerário da coragem, recolhia-se à casa em Botafogo, onde ficava a contar os minutos entre uma refeição e outra, na espera aflitiva do fim-de-semana com o humor de Chico Anysio Show na TV Rio, um mil-folhas entre os dedos roliços e uma caneca de Coca-Cola gelada na outra mão. Sempre negligente às datas da família, agora sabia até mesmo os aniversários de sobrinhos e netos, fazia questão de oferecer a casa para os parabéns e as tortas de morango.
      Com o mundo cotidiano reduzido à sua casa em Botafogo, a herança de família parecia crescer na mesma proporção dos quilos. Ainda naquele 1962 casou a filha mais nova. Se queimava algumas somas a mais em dinheiro, era porque o prazer maior constituía-se agora em satisfazer uma nova e imensa fome. Através do simples movimento de estender o bra­ço, apalpava o mundo com a mão gordinha, agarrava-o entre os dedos, sopesava-o e o trazia à boca para triturá-lo nas salivas da solidão. A sua figura reluzente dominava por completo a mesa das bodas, dos aniversários, dos encontros de família e dos reiterados jantares entre amigos. E dominava com um brilho que chegava até mesmo a ofuscar o colorido dos pratos e os arranjos cada vez mais criativos para iguarias sempre raras e sofisticadas, que exigiam de sua mulher minuciosas pesquisas em revistas culinárias de diversas nacionalidades. 
       Seu apetite já não conhecia fronteiras: pela boca incursionava um Japão de sashimis ou uma China de frango-xadrez, uma Itália ao sugo e franças em abundância pantagruélica; a Espanha, ao som de castanholas, fazia uma rumorosa entrada com paellas escoltadas por gaspachos, enquanto os portugueses, mais discretos em sua índole imperial, completavam o avanço peninsular com um circunspecto bacalhau; os Doces Árabes, com novas guerras santas, faziam ruidosas invasões pelas laterais da língua, enquanto os gregos ateus, mais espartanos que os latinos, ofereciam em filosofia gastronômica o seu banquete de Platão. Assim, pela formidável boca, Ásias, Europas, Oceanias, Áfricas e Américas, todos os continentes vinham lhe render as mais supimpas homenagens, mitigando a fome de mundo que o fazia mais e mais ancorado à mesa de jantar em Botafogo.
     Ainda lhe restavam as noites de sonhos, as raras noites em que não era assediado por Honorato em seu cavalo negro. Sonhava com o Natal e o Ano Novo já vizinhos, próximos das mãos e da boca. A expectativa pelas festividades de encerramento de uma vida confinada dava-lhe a lúgubre esperança de escapar incólume ao fio ceifador do destino jurado. Tal presságio anunciara-se, como quase tudo de bom em sua vida, pelas generosas palavras da mulher. Ela, acompanhando o filho que viajava para a Europa, encontrou Honorato no saguão do Santos Dummont embarcando o garanhão do Freitas para disputar o Derby de Newmarket na Inglaterra. Apontou-o para o filho com voz firme e bastante audível: “Hoje você vai conhecer o assassino do teu pai”, e notou a fisionomia de um Honorato temeroso saindo detrás das páginas do “Turfe”, tal qual uma gigantesca lagarta subindo uma folha de relva. Honorato nada disse, apenas levantou-se e saiu em direção ao guichê da Varig.
     O Gordo, que não ocupava mais o lugar de honra à cabeceira da mesa, entre os convidados de seu aniversário primaveril, não escondeu um acanhado sorriso de satisfação com o relato da mulher, o doce do licor ainda na boca. Deixou a sala em pesadas manobras, apoiando-se com dificuldade no tampo da mesa, na guarda das cadeiras e no aparador, e foi bamboleando feliz para a varanda da frente. Diante da movimentada rua de sua casa, sentado na velha espreguiçadeira de balanço, enfiando os dedos na treliça do assento, recuperou um prazer antigo, extraviado num dis­tante domingo de corridas de cavalos na Gávea.
      Do interior da casa chegavam as vozes dos convidados em meio ao tilintar da louça recolhida. A voz de sua mulher, sobre­pondo-se com uns falsetes tão característicos, recuperara, em tons agudos, um pouco do brilho passado. Ouvi-la à distância, entre os rangidos da cadeira, era o mesmo que ter de novo a renda dos vestidos costurada pelos acordes da Hípica, ou o roçar das fichas na planura verde do feltro com o acento castelhano do crupiê, “Façam sus jogos, seniores”, e a fortuita roleta da sorte às voltas e voltas com sedas e cetins. O timbre da mulher vibrava cordas esquecidas, erguia lentamente os fantasmas da cidade submersa, uma a uma desfilavam na tela da memória as cenas da vida deixada para trás. A galope, cruzavam as imagens negociadas entre amigos e colegas nos campos do grande mundo, mas a trote marchador passavam menos que imagens, mais que fantasmas, as figuras esmaecidas de seus avós, o humor circunspecto dos pais e as adoráveis brincadeiras com os Irmãos Traquinas, a infância com os primos nas serras e matas de Nova Friburgo. E mais tempos, tempos e tempos cruzavam sua mente arremessados pelas cordas vocais da mulher, velozes flechas em chama contra o coração de um alvo abandonado.
      Nos baixios da voz, ouvia os ruídos do mundo à sua volta, um rumorejar taciturno, emboscado. Em tais areias armadilhadas, o pesado transatlântico veio abalroar com a preciosa carga, rompendo o casco e expondo seu interior ao sal marinho. Ouviu um brinde retardatário ao Montecristo, “em viagem de conquista ao país de seus velozes ancestrais”, e vieram à sua mente imagens de pradarias inglesas cruzadas pelos puros-sangues de criação aprimorada. Imaginou a limpidez das linhas, um requinte de raça jamais apurado na história humana, e admirou-se no lugar de um general francês cavalgando sob promessas de graças espirituais em busca do Oriente, numa Cruzada para a conquista das Terras Santas –– levava no peito a cruz de pano vermelho e na garganta o lema cortante como um fio de espada, “Deus o quer!” Seguia entre as hostes guerreiras feito um audaz Godofredo, já senhor de terras e escravos, para se tornar o Defensor do Santo Sepulcro e lá fundar o Império do Prazer. Finalmente o imperador de posse do seu destino de vitórias e conquistas, marchando sobre os cadáveres inimigos para cruzar o disco final na vanguarda do regimento. As ilhargas formigavam, e logo reverberaram nos braços vigorosos, as mãos empunhando as rédeas do triunfo. O cansaço latejou nas têmporas –– e uma pressão cada vez maior dentro do peito. 
   Enfim, o prazer indizível, acender o legítimo Havana com o próprio invólucro de plástico, o lacre do selo rompido em seu verme­lho-dourado, a noite fresca lá fora e as luzes da praça esfumadas pelos desejos baforados, misturando-se aos minúsculos pontos de luz das embarcações no indistinto mar, entrecortados pelos perfis disformes dos transeuntes noturnos. Os passos na calçada, misturando-se ao débil marejar das ondas na praia, de repente transformaram-se em ruídos de cascos sobre o calçamento, e do negrume já quase completo da espessa noite, recortou-se a figura precisa de Honorato em seu cavalo negro. Saindo do mar, cruzando a praça mergulhada em luzes mortiças, veio num ritmo de fremente musculatura para saltar as grades do portão da casa e postar-se diante dele, altivo e triunfante. Uma náusea gorda subiu do amplexo-solar para os cantos da boca, somando-se ao sabor da nicotina. Honorato, ao contrário das outras vezes, não trazia a sua ceifa; no lugar dela, empunhava uma lança com uma fita vermelha amarrada na extremidade, pronta para cruzar o disco do coração. 
      Ele sentiu enrijecerem-se os músculos da nuca, e dali a paralisia espalhou-se pela cabeça, engolfou as têmporas e chegou aos olhos já turvados pela última baforada que o separava do mundo. A figura imponente de Honorato borrava-se à sua frente com a lança já aprumada sobre o ombro –– e ainda a saliva babada pelos cantos da boca. As últimas ondas de sua vida gastavam-se contra o rochedo negro; da memória, como que de uma embarcação a pique, a onda derradeira tomou fôlego, cres­ceu, e em seu vulto prodigioso trouxe junto a areia do mar revolvido, e na turvação dos infinitos grãos de cristal enfim jorrou o interior de seu Santo Sepulcro, e por um segundo as pradarias de suas Terras Santas encheram-se com as imagens de sua vida, e ele pôde ver, no instante supremo em que as imagens puseram-se lado a lado num magnífico rochedo de luz, ele pôde ver, afinal, toda sua glória, uma faísca antes de mergulhar no escuro, arrastado pela poderosa onda que varreu do mundo a praia de Botafogo para sempre, deixando sobre a areia deserta apenas um hieróglifo cunhado pelo vento glacial, que ficaria como o emblema da Cidade Maravilhosa, perdida para sempre: “Gordo, eu vou te matar!”

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