sábado, 18 de janeiro de 2014

O Complexo de Homero - II

Nesta segunda parte do artigo, irrompe o personagem como potência máxima do estilo, mas este ainda responde às condições propiciadoras do determinismo e da liberdade. A dialética de sua dinâmica afinal se resolve por escolhas ditadas pela ética e pelo talento do autor, selando assim o grau de compromisso assumido por este diante do mundo. A reconfiguração do material selecionado será a sua resposta.

Por Marcelo Degrazia


O narrador é o ente libertador do escritor, o carcerário que abre a porta da prisão para sua saída à rua. Não estamos mais sob o comando de um império absolutista, mas os poderes do narrador são, em último caso, outorgados pela instância superior que dirige o espetáculo. Mas ambos deverão se movimentar pelas limitações determinadas por uma lei maior, a lei da rua.

Na busca do Santo Graal, eles, autor e narrador, queiram ou não, seguirão os comandos por vias de mão dupla, vias com sentido único e/ou becos sem saída, um cipoal de vias tão enredadas que poderíamos chamar de sintaxe da urbanidade. (Não pergunte o que é isso, apenas sinta uma cidade – a sua cidade preferida – caminhando dentro de você). 

Nesse caminho eles enfrentarão toda sorte de obstáculos, como lombadas, pardais eletrônicos, buracos no asfalto, desníveis, motoristas embriagados, a criança que se desprendeu da mão do pai, tachões, falta de placas de sinalização, semáforos enguiçados, trânsito parado, pistas bloqueadas por acidentes, paralelepípedos soltos, ruas sem pavimentação, passagens de nível, queda de barreira, carros estacionados em mão dupla, enfim toda sorte de oposições e dificuldades para a fluidez do trânsito na caótica urbanidade de nossas ruas (E tudo isso acontecendo dentro de você).

Poderíamos chamar esse trânsito caótico de vocabulário selvagem.

É na confluência desses dois eixos de linguagem – as vias fixas e seus acidentes – que o autor e sua entidade representativa, o narrador, deverão organizar o material 
previamente selecionado pelas instâncias superiores do autor. Chamamos isso de inconsciente e de razão, e incluímos também a pele, os membros, os sistemas e órgãos – e sobretudo as vísceras. A tarefa é pesada, por isso sempre se recomenda o número maior possível de gerentes-narradores e de vozes-escravas auxiliares (os personagens). Até porque, se o pai de todos (Homero) se utilizou de vários agentes de muitas gerações, porque o nosso escritor contemporâneo, com o tempo disponível de apenas uma vida sem certezas, prescindiria de auxílio tão valioso?

Embora no controle da situação, até onde é possível numa atividade em que o inconsciente dá as cartas e joga de mão, o autor delega parte de seu poder ao seu representante. Este, o narrador no uso da liberdade concedida, vai fiando a trama do bordado. Quanto maior a confiança e o entrosamento entre ambos, maior a desenvoltura e a liberdade do representante do autor na obra. Assim como este, o narrador também tem suas manias e particularidades, e ao abordar o material que lhe foi confiado, vai, a exemplo de um rapsodo homérico, imprimindo nele a sua marca.

Com a orientação do seu criador e o auxílio das vozes dos personagens, o narrador brinca de Deus. Inclusive quando
parece renunciar a todo poder, como é o caso do narrador de Samuel Beckett. Até alcançar a ordem consciente e, sobretudo, inconscientemente buscada pelo autor. O tipo de narrador, sua posição em relação aos materiais da história, sua constituição ôntica, sua origem social e sua formação política (ainda quando tudo isso não esteja claro na cabeça do escritor - pior pra ele!) produzirão de todo esse material um certo foco regulado pelo autor, e tão nítido e transparente quanto mais clareza o escritor tiver do seu processo de criação. 

Então, como estamos no âmbito de uma liberdade concedida, o estilo imprimido pelo narrador, com seus vocábulos selvagens, sua sintaxe urbanizada e suas inflexões de voz, constitui-se de um composto de materiais e modos transferidos a ele diretamente do espólio do autor, para formar isso que poderíamos então chamar de estilo outorgado, ou concedido, afinal o controle do jogo está sempre nos dedos da instância superior, sem a qual o cosmos literário não se realiza em todo seu complexo.

Mas, se bem lembramos, novos figurantes subiram ao tablado e ameaçam roubar toda a atenção do espetáculo: os personagens.

Ah, os personagens! Serão eles, então, os donos do estilo?

Nesses círculos infernais, descida que nem mesmo a Dante estava permitida, o amálgama furioso encontra o seu fundo, o seu reflexo, o seu espelho na mais aguda perspectiva. É aí que a luz emitida pelo autor e filtrada pela entidade do narrador, reunida novamente por uma espécie de prisma invertido na alma da personagem, afinal explodirá. Mas, para que o milagre se realize em toda sua potência, embora de papel, o personagem deverá ter peso, ainda que todo o seu peso de carne e ossos somados seja convertido na luz do personagem aparentemente sem história nem circunstância, tal qual, mais uma vez, o personagem becketiano. Pois será esse seu peso que deverá realizar a outra face do milagre, a de se constituir num ímã poderoso o suficiente para atrair e galvanizar, em torno de sua alma-armadura, os pulsares de luz emitido sobretudo do inconsciente do escritor.

Se o narrador é o filho do autor, os personagens são seus netos, a quem a deseducação, dentro dos limites da rua – ou da literatura – é permitida e até mesmo estimulada. Porque as leis que orientam e controlam os dois primeiros, estão todas suspensas no caso do personagem, ao menos num primeiro momento. E isso para que o escritor, consciente ou inconscientemente, faça sua escolha dentre as leis que melhor representem seu juízo, seus sentimentos, seus órgãos, suas vísceras. No caso dessas últimas em especial, cria suas próprias leis pancianas e quixotescas, para formar o cosmos de sua escatologia.

E aí, meus amigos, o personagem é todo estilo! São as pulsões mais fortes e puras traduzidas na linguagem, as revelações individuais dessas novas entidades da obra que tomam conta do tablado e, dentro dos
limites estabelecidos
pelos dois primeiros, erguem a história diante dos olhos do leitor. É impossível, no ponto em que chegamos, não fazer a relação metafórica dos conceitos da psicanálise com essas categorias narrativas, em que o escritor corresponderia ao ego, o narrador ao superego e o personagem ao id selvagem de todo esse amálgama. Pelas características deste último, não é de se estranhar que o personagem, ao expandir aqueles limites, inova.

Na constituição final do estilo, as marcas mais fortes (considerando que todas afinal partem do escritor) são gravadas pelo personagem, com mais ou menos determinismo... É aqui onde repousa e onde se resolverá a questão da liberdade. Nesse percurso da luz, conforme o núcleo emitente de seu facho, poderíamos classificar os escritores em lógicos, sentimentais, orgânicos e viscerais, conforme a intensidade maior de seu brilho, já que todos eles recebem e transmitem seus estímulos de todos os núcleos de sua pessoa. Mas colocar as coisas nesses termos, embora facilite do ponto de vista da análise, daria chance a um método cujo resultado prático seria uma visão engessadora do processo.

Penso que a melhor resposta para o estudo do estilo da obra, levando em conta todos os procedimentos do autor e as categorias aqui pinceladas, seria dada pela ótica da liberdade. Talvez essa poderosa e cegante lente, à luz da própria obra, poderia nos fornecer alguns resultados esclarecedores sobre o processo de criação. E de saída, a intuição nos diz que, na direção entre o juízo e as vísceras, o sentido corre mais fortemente do primeiro ao último.
Ou 
seja, quanto mais baixo e internalizado o facho de luz, mais fortes e ricas serão as cores de sua liberdade. Ou de outro modo: a liberdade, no gesto de projetar a luz através da linguagem, ganha mais força e velocidade quanto mais se aproxima das vísceras, do inferno, do âmago. O que nos leva a desconfiar que, embora se apresente mais lúcida na razão do sujeito da obra, a origem e toda sua força libertadora está nas infravias do indivíduo, ou naquilo que chamamos de amálgama furioso, o seu núcleo mais candente e poderoso. Mais um passo e libertamos a besta! Mas se ela irrompe em seu estado bruto, adeus obra, não sobra pedra sobre pedra, até porque o autor, nesse estado de paixão, não sentiria necessidade alguma dela.

Mas, como vimos anteriormente, o escritor, se não se precaveu com um plano de voo antes de iniciar a viagem, ainda assim, ao se utilizar da sintaxe urbana ara ordenar o fluxo selvagem das palavras, ainda assim é ele, por mais desmandos que promova o personagem, ainda assim é ele quem está no comando do processo. É verdade também que poderemos medir o seu grau de liberdade quanto mais perto ou longe ele esteja dos extremos. Isso é verificável por sua formalização dada ao material. Se mais perto da razão ou do juízo, mais controlado e educado sairá seu facho, mais redonda a frase, e, contrário senso, quanto mais perto das vísceras, maior será a força de sua liberdade, mais pontiaguda a frase, e, por consequência, mais frouxa a formalização do material. Os sentimentais e os orgânicos ficam no meio do caminho. Por isso mesmo, os escritores que mais mobilizam o leitor são justamente aqueles que emitem seus pulsares, se não de dentro, ao menos o mais próximo desse amálgama furioso. Ou, como diria James Joyce, e Clarice Lispector aproveitaria para o título-emblema de sua obra: perto do coração selvagem.

Isso nada tem a ver com juízo estético – afinal cada obra traz sua própria poética –, e sim com a liberdade que cada escritor concede a si mesmo na
escolhe e visão do material. Essa própria visão já é um selo qualificador
de liberdade, pois gradua a posição do autor diante das possibilidades de momento e orienta o tanto de liberdade permitida ao seu narrador. Até o limite de entregar as migalhas aos personagens, no caso de não permitir que estes assumam o controle do jogo, ainda que temporariamente, como por exemplo num fluxo de consciência. Talvez até por medo da liberdade, por tudo que implica a sondagem do desconhecido, ou por temor de perder o plano da obra rio abaixo.

Pois aqui entra, no fim das contas, o dado crucial para a formação do estilo da obra. No centro o temperamento, no entorno a formação, as referências, o xadrez de estrelas e suas correspondências nas galáxias de palavras, tudo enfeixando a sensibilidade, a inteligência, o talento. Isso tudo formará o homem que formará o estilo. E esse estilo, de certa forma, na forma da obra, expressará a visão do autor, ou o ponto de vista da obra a respeito de todo seu material abordado. Ajudaria bastante se pudéssemos acessar, inclusive, os artigos recusados nesse processo de juntar a matéria no quadrante da futura obra. Pois assim qualificaríamos melhor a liberdade e a orientação do escritor no tratamento do seu tema.

Em princípio, no sentido sartriano, todos partimos da mesma cota de liberdade, se aceitarmos a consciência como entidade totalmente aberta ao mundo, antes de aderir à matéria. A consciência, em seu fluxo permanente e vazio de sentido, só obtém sua existência objetiva quando adere à matéria do mundo. Mas já não somos mais consciências puras e a matéria do mundo que interessa ao escritor, em especial o ficcionista, é a matéria que já foi tocada pela mão humana. Ou seja, antes do encontro, o escritor já possui sentido, assim como a matéria de sua eleição. 

Por que ele se orientou para determinados artigos do mundo ao invés de outros? Aí começamos a adentrar no determinismo de origem, o que vem da experiência
acumulada, processo do escritor que em nada, do ponto de vista fenomenal, difere dos demais seres humanos, a não ser que sua especialidade já o adestrou a olhar a matéria do mundo de uma certa maneira até aqui, mas nada garantindo que não possa olhar amanhã de maneira diferente para os mesmos artigos. Estes, por sua vez, também guardam, de maneira explícita ou cifrada, a forma resultante das forças históricas, políticas e sociais que os determinaram até aqui, nada impedindo que o escritor, ou outro sujeito em seu lugar, amanhã lhe dê outro sentido.

Nesse encontro do sujeito com o seu objeto, quanto há de determinismo e liberdade?

Nosso assunto já começa a partir das escolhas feitas pelo escritor. É aí que sua liberdade ganha sentido. Pois com mais ou menos determinismo, com mais ou menos liberdade – a psicologia atua sobretudo em função do passado do escritor. Mais ou menos consciente, mais ou menos inconsciente, ele fará a escolha, e essa escolha trará a tônica de um estilo. A marca da liberdade, por onde podemos inferir o grau dela em suas escolhas, é o que ao fim nos dirá o quanto o escritor usou de liberdade em seus movimentos na realização da obra. 

Sem dúvida, a liberdade da escolha estará condicionada pelas limitações do material, pela experiência, pela posição social do escritor, por sua infância, etc., e disso dependerá o maior ou menor grau de determinismo e autonomia, não há como fugir. A liberdade, enquanto faculdade da consciência, em tese, é absoluta no seu estado de potência. Mas, enquanto força que se projeta em direção à escolha para se realizar, jamais será plena, ainda que a experiência materializada, enquanto fruição da própria escolha, nos ofereça a estupefaciente sensação de totalidade. Ainda assim será parcial e limitada pelo enquadramento anterior à experiência literária dado pelo escritor. E embora condenado à liberdade, como diria Sartre, não há garantia alguma de que fará a escolha mais acertada. Até porque, escolha certa para quem? E sob que ângulo de visão?

Antes de escolher o projeto a que se lançar, ele, de acordo mais uma vez com o filósofo francês, experimentará a angústia. Para além dos determinismos, o dele e o do material, o escritor estará diante das
questões: que mundo tenho diante de mim? como posso me posicionar diante dele? E mais: como devo me utilizar dele? Aí entramos no tema da ética, a base de toda liberdade refletida em si, no outro e no mundo. Portanto, ao escolher seu material, ao determinar seu ponto de vista, ao ordenar seu narrador e chicotear suas personagens com a sintaxe mais ou menos urbana e a palavra mais ou menos selvagem, ele estará escolhendo um mundo dentro de um mundo de possibilidades, criando um cosmos, ordenando a vida, ao menos os termos do código com o qual escolheu dialogar com a realidade à sua volta.

Se é um labirinto sem saída ou se é o convés de um iate para ondas aprazíveis, e tudo o mais que possa haver entre esses dois caminhos, só a experiência estética do estilo orientada pelo talento no uso de certa liberdade ética dirá. O leitor então saberá afinal com quem está falando, que gato ou lebre, que cordeiro ou lobo estarão tentando lhe vender por baixo da pele. Nessa experiência pode ser que o escritor, ao escapar do determinismo para mergulhar nas ondas turbulentas da liberdade, conforme o seu grau de determinismo, pode ser que esse salto angustiante seja vivenciado por alguns como liberdade demais, o tipo de condenação que provoca a angústia e logo uma possível paralisia. Para estes, então, será sempre preferível uma liberdade operativa, pragmática, e tanto melhor se ela for o fruto de uma constituição ética e livremente pactuada – até onde se é possível se ser livre na fatura e observação das leis.

Aplique-se isso à questão da (auto)biografia e se terá, por outro ângulo (mais fechado e profundo) uma ideia da enorme complexidade do problema.


Para não tirar nem dar toda a razão a Buffon, poderíamos, para retocar a sua máxima, chamar a colaboração de Ortega y Gasset e concluir: o estilo é o homem e a sua circunstância, aí incluídos o presente e o passado do escritor e do mundo, o material e sua angustiante abordagem agenciada pelo narrador e suas personagens, e aquelas duas condições propiciadoras expostas ali atrás (determinismo e liberdade), enformadas pela ética e pelo talento individual nos processos das escolhas.

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