quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Quando o aluno procura o mestre

Entrevista informal de Luiz Antonio de Assis Brasil
a Marcelo Degrazia
PUC-RS – 17.08.1994




A entrevista abaixo na verdade foi um bate-papo, logo em seguida à época em que frequentei a oficina de criação literária de L. A. de Assis Brasil na PUC. Informal, próprio dessas relações, o encontro não teve outro objetivo além de esclarecer dúvidas sobre os procedimentos técnicos do processo criativo. Por isso não houve indagações referentes à obra do autor, por exemplo, e menos ainda referências a qualquer tema extra-muros. Outra ressalva importante: as perguntas, além das poucas anotadas, foram na sua maioria feitas no calor da hora, por associação, sem que Assis Brasil pudesse elaborar de maneira exemplar suas respostas. Sem arranjo prévio nem gravação da conversa, o desejo de registrá-la surgiu apenas mais tarde, no ônibus de volta para casa. A saída então foi tentar recompor as questões mais importantes (ao menos as que assim me pareceram na ocasião), a partir da memória. Portanto, os lapsos, a falta de sequência lógica, certos cortes abruptos, interpolações, algum determinismo e outras possíveis falhas, preservado o essencial de cada resposta, se deve ao método jornalístico aplicado aqui de modo canhestro, ao esquecimento e à inexperiência do falso repórter. 

Ao ler o material com os olhos de hoje, no entanto, devemos ressaltar a coerência entre as respostas e a obra do autor (em especial nos livros a partir de "O Pintor de Retratos"), a recomendação no mínimo perturbadora aos fãs incondicionais de Guimarães Rosa e Clarice Lispector e a localização primordial da obra de Simões Lopes Neto na história moderna da literatura brasileira. Muito instrutiva a respeito de seu processo, pelo menos até aquele momento, é a exposição de facetas de seu próprio método de composição, em especial no que diz respeito à criação e desenvolvimento das personagens e sua relação com a trama. Iluminadora é a sua concepção de tema como mito pessoal do escritor. E, para um temperamento conciliador como o de Assis Brasil, sua resposta firme em relação ao papel da crítica para a formação do escritor, no que diz respeito estritamente ao ofício e suas agruras, seria um polêmico ponto de partida para uma saudável discussão. 

Mas gostaríamos de destacar, sobretudo, o aspecto talvez mais fundamental para a ficção, que andara sufocado pelo excesso de experimentalismo nas décadas anteriores, mas que no início dos anos 1990 ainda provocava (talvez ainda provoque...) urticária em certos círculos literários, e por isso mesmo é importante relevá-lo nas respostas do autor: a valorização da narrativa. Ao menos de certa narratividade, se podemos assim dizer, com menos visibilidade para as idiossincrasias do autor, em nome de mais espaço à personagem e ao leitor, afinal o grande destino de todo bom texto.  




Luiz Antonio de Assis Brasil
Haveria situações em que a melhor saída seria uma ad-jetivação convencional? Por exemplo, quando o substan-tivo é apenas um elemento de apoio à narrativa.

AB – Sim. Quando a ação de uma personagem é uma ação corri-queira (ao levantar uma xícara de cafezinho, por exemplo), não se deve perder tempo em descrever essa ação, com detalhes da porcelana e de seu desenho, a menos que isso seja essencial. Tais descrições interrompem a narrativa e acabam por cansar o leitor.

Não seria o caso da descrição que José Saramago faz da queda de uma cadeira, no conto cujo título é o nome do próprio objeto.

AB – Exatamente. Nesse caso, o tema de todo o conto é a queda da cadeira e o seu valor simbólico. Ainda sobre os adjetivos, penso que a combinação de substantivo concreto com adjetivo abstrato já não rende nada de novo. Ao contrário, a combinação de substantivo abstrato com adjetivo concreto tem bons resultados a oferecer. Desligar um adjetivo do seu contexto de origem, já fixado pela tradição, e ligá-lo por sua vez a um contexto inusitado, dá resultados surpreendentemente bons.

Em que medida a “cor local” deve ser empregada para não se cair no regionalismo?

AB – A “cor local”, como os nomes, adjetivos, locuções e expressões regionais, etc., deve ser usado de maneira orgânica, funcional, sempre a serviço da narrativa. Mas, antes de tudo, a opção pelo regionalismo é uma opção ideológica e não estética, pois implica numa visão determinada do mundo, ligada a certos costumes e princípios arraigados, e por isso ele é muito limitante.

Não seria o caso de Simões Lopes Neto, que usou o próprio regionalismo para superá-lo, numa linguagem carregada mas saborosa. Lembro do seu conto “As Trezentas Onças”, em especial. Aliás, muito antes de Guimarães Rosa.

   
Simões Lopes Netos
AB – Simões Lopes Neto é um caso único na literatura brasileira. Ele foi um modernista avant la letre, antes de 1922; transcende o regional para expressar as inquietações do espírito humano. E o mais espantoso é que ele fez isso de maneira ingênua, pois não tinha uma sólida formação, não era um literato.



Capa da Ática
 Até que ponto as colagens de modos, tons e gêne-ros são conflitantes?

  AB – Essa é uma preocupação vã. Hoje em dia não se tem mais interesse em determinar gêneros ou pureza de estilo, e sim, se o texto está bem escrito, se as situações que ele apresenta estão bem resolvidas. Até hoje os críticos polemizam em torno de “Dom Quixote”, não sabem em que gênero enquadrá-lo. Essa é uma preocupação inútil, até porque muitos clássicos, além do livro de Cervantes, não pertencem de maneira exclusiva a nenhum gênero.

É correto dizer que, de uma forma ou de outra, todo texto é datado? Essa questão me ocorre em virtude de uma preocupação excessiva de alguns autores em não datarem seus textos.

AB – É evidente. Não se pode fugir ao tempo. Nesse caso, é preciso muito critério na seleção do material para não se condenar prematuramente um texto. É o caso da moeda, por exemplo. Os alemães costumam se referir ao Marco em suas histórias, mas lá a moeda tem resistido mais. De qualquer forma, é sempre um risco. Por outro lado, a linguagem também não pode fugir ao seu tempo, pois se você o encobre com a supressão de suas próprias marcas, ele acaba por denunciá-lo. O melhor é evitar os modismos tanto de linguagem quanto de comportamento, ou culturais, e usar do seu tempo só aquilo que é essencialmente indispensável para a economia narrativa.

Ilustração de Gustave Doré para o romance de Cervantes

A retomada da narrativa, para não representar apenas um desejo nostálgico feito os movimentos de retorno estético como o Neoclássico, ou de fuga espiritual como no caso do Romantismo, para não ser apenas isso, como ela deve articular a linguagem e a estrutura, tendo como força motriz o conflito?

AB – Essa é uma questão que cada escritor deve responder com o seu próprio trabalho. Em literatura não há mais fórmulas. Os escritores são seus próprios deuses e algozes. Com a agonia do pós-moderno, está se valorizando mais a narrativa, porque na verdade ela nunca esteve ausente da cena, nunca foi uma moda.

Ela preenche uma necessidade básica do ser humano: ouvir e contar histórias.

AB – Exato. Esses movimentos são cíclicos, ora se privilegia a linguagem, ora a narrativa. E no caso da linguagem, citando a questão dos adjetivos, ainda há muito o que se criar e transformar. Veja o caso de Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Não são aconselháveis para escritores em formação. A aparente facilidade com que escreve Clarice, por exemplo, engana facilmente. Você olha aquilo e diz “eu posso fazer igual”. Mas é falso. Guimarães é outro escritor que fascina desde logo pela riqueza de sua linguagem, e somos tentados a fazer igual. Mas ele também é único.

Nota-se que são dois autores falhos na estrutura.

AB – Vargas Llosa já é um excelente caso de estrutura bem resolvida. Pegue, por exemplo, “Guerra no Fim do Mundo”. É impressionante a obsessão com que ele constrói o seu romance, um trabalho de precisão matemática, com uma estrutura férrea, de geômetra. A entrada e saída dos personagens, a cada capítulo, seguem uma ordem rigorosa na alteração de suas posições na trama: o que ora entra em primeiro, no próximo capítulo já será o segundo, no outro o terceiro, e assim até sumir do romance. Quem é capaz de fazer isso tão bem quanto ele e outros poucos? Costumo dizer que só os gênios descobrem essas formas novas de estrutura; os outros escritores as copiam, com suas alterações peculiares. No Brasil, o João Ubaldo Ribeiro de “Viva o Povo Brasileiro” é um bom exemplo de estrutura. 
Autran Dourado
Mas, sem dúvida, é Autran Dourado, o nosso melhor engenheiro. É notável a precisão com que ele armou a estrutura de “Os Sinos da Agonia”. Outro caso extraordinário é o de García Márquez, que nunca se repete, está sempre procurando uma forma nova para tratar de seus antigos temas. Aliás, como Picasso, que certa vez admitiu copiar todo estilo que achasse interessante, mas jamais se permitiu copiar a si mesmo. Resumindo, cada escritor, seguindo seu mito pessoal, dá uma resposta muito particular a cada uma dessas questões.
Capa da Difel

De Autran Dourado, é também o caso de citar “O Risco do Bordado”, e o título aliás não é por acaso. Ele inclusive mostra a “planta baixa” em seu “Uma Poética de Romance: Matéria de Carpintaria”, no qual compara os arranjos para a estrutura aos andaimes de um prédio: uma vez em pé o edifício, jogam-se fora  roldanas, cordas e madeiras. 
Marcel Proust
Seria o caso de citar, também, o romance de Marcel Proust, de quem se costuma sempre ressaltar a linguagem, não faltando crí-ticas a uma suposta construção caótica. Pois Gerard Genette, em “As Estruturas Narrativas”, demonstrou bem que a mon-tagem de todo o material de “Em Busca do Tempo Perdido” segue um princípio or-denador, são vasos comunicantes, e não por acaso o último volume termina justa-mente quando o narrador está preparado para dar início à sua obra monumental, a obra cuja leitura já estamos concluindo com o último volume. A propósito, o que você acha de um escritor ler os críticos para a sua formação?

AB – Absolutamente inútil. Assim como os professores, os críticos não têm nada a nos ensinar. Aprendemos o ofício de escrever lendo os bons autores, só com eles vamos aprender a organizar o nosso material narrativo e a afiar a linguagem. Os professores não têm condições de nos mostrar isso tão bem quanto um colega.

Como você vê as antigas questões de tempo e espaço?

AB – O tempo histórico, para ficar só nele, se é o tempo presente, não oferece muita dificuldade, já que facilmente o leitor contemporâneo o reconhece, afinal é o seu tempo que permeia a história. Já quando se trata de uma narrativa de época, o narrador não pode abdicar de seu próprio tempo, no caso o contemporâneo, em troca do passado. Lembremos o narrador de “Memorial do Convento”, de José Saramago. Ainda que acompanhe as etapas de construção do convento e as evoluções da passarola, o narrador sempre deixa transparecer sua condição presente. Fica claro que é um olhar de hoje sobre o passado.
Capa da Bertrand Brasil

E isso envolve também uma questão ética. Mas antes disso, a dicção do narrador, sua maneira de ver os fatos, as piadas até, deixam sempre evidente, inclusive no caso do “Memo-rial”, e é impossível subverter isso, que o narrador não é “daquele tem-po”.
    
AB – De outro modo, não teria sentido. O narrador deve mostrar sempre uma posição crítica em relação ao passado. Veja o caso de Alexandre Herculano, em “Eurico, o Presbítero”. O seu narrador chega a nos cansar com seu ponto de vista da época que aborda. E isso não tem valor para nós, pois aquela visão é a visão que o próprio passado tinha dele mesmo, e o que importa, para nós, é libertar o passado para vê-lo com nova luz. Nesse sentido, Herculano não nos ajuda.

Até porque, o tempo passado possuía um ritmo próprio, que não é o nosso, e por maior que seja o esforço do escritor, seu narrador e seus personagens vão de algum modo trair o tempo presente.

AB – Sim, o narrador não deve incorporar a personagem do passado; ao contrário, deve agir com a consciência do seu tempo e deixar claro sua intenção na história. Ainda sobre o tempo, ele funciona como elemento auxiliar da narrativa, ajuda a estruturar (organizar) o material da ficção.

E quanto ao espaço?

AB – O espaço deve ser o mais claro possível, transparente. O leitor deve ser informado, ou antes, o texto tem que fornecer marcações precisas para que o leitor se localize, visualize a ação no espaço. Antes de escrever meus romances, pesquiso sobre o espaço e as locações em que vai se desenrolar sua história. Mas é preciso cuidado para não tornar muito evidente a pesquisa, para não fazer da história um mero documento. De toda a pesquisa, quando muito, aparece 5% para o leitor, é a ponta do iceberg, visível o suficiente para localizar os navegadores e evitar desastres de percurso, como no caso das cargas de cavalaria de “A Ferro e Fogo”, de Josué Guimarães, que a certa altura já não sabemos mais se os cavalos afinal sobem ou descem as coxilhas, ou de que lado avançam. Érico Veríssimo, no Brasil, é um excelente exemplo de visualização espacial.


Ele, inclusive, fez a "planta baixa" de Santa Fé antes de começar “O Tempo e o Vento”, à qual voltava sempre que tinha alguma dúvida. E quanto aos personagens, você os define antes de começar? O que você pensa dos personagens que “fogem do seu criador”?

AB – Os personagens, a rigor, não tem vida própria, são criações do autor. No meu caso, delineio somente os personagens principais antes de começar. Mas nunca antes do tema e da trama. É sempre a trama, as condições criadas para o seu desenvolvimento, que me sugere os personagens, nunca o contrário. Quando inicio o trabalho, já sei o aspecto físico, a idade, os gostos, traços psicológicos e a posição que cada um vai assumir na trama. Nunca me acontece de um personagem fugir ao scripty; se isso ocorre, é por falha na estrutura. É claro que à medida que você vai convivendo com um personagem, vai também descobrindo cada vez mais coisas a respeito dele, aprofunda seu conhecimento sobre ele, mas nunca ao ponto de “perdê-lo”. O que ocorre com mais freqüência é o escritor se perder. E isso por falta de “planta baixa”. A certa altura, se ele não tem conhecimento prévio da trama nem do material a ser utilizado, se não conhece os conflitos de seus personagens, não sabe o sentido da ação, a certa altura esse escritor vai travar, e aquilo que ele poderia resolver em meses, demorará anos, até que encontre a clarividência sobre a própria obra. Isso sem falar no imenso trabalho que causam os “achados” no meio do percurso, as guinadas impulsivas para um lado e outro a fim de persegui-los. Então, é preciso reescrever boa parte do que foi feito para justificar tais “achados”, o que causa grande perda de tempo, por mais moderno que seja o computador utilizado. Há também um outro caso típico, o daqueles escritores que partem com o conhecimento prévio apenas dos personagens, ignorando o tema e a trama; pensam que basta você definir com clareza todos os aspectos dos personagens e em seguida jogá-los em cena, como se sozinhos eles fossem resolver o problema da falta de estrutura.

E como você escolhe o tema?

AB – Na verdade ocorre o contrário, é o tema que nos procura. O autor escreve sempre sobre os mesmos temas, e não seria absurdo dizer também que está sempre escrevendo o mesmo livro. O tema acompanha o autor toda a vida, é o seu mito pessoal, que ele vai desvendando à medida que escreve. Por isso, são poucas as variações temáticas em um autor, ou antes, são todas manifestações paralelas, partem de um mesmo núcleo. Não acredito que um escritor possa escolher aleatoriamente um determinado tema e escrever sobre ele. Antes, vai encontrar o tema nele mesmo, num esforço de decifrar a si mesmo, o seu mito pessoal. Agora, esse tema não pode nunca aparecer isolado dentro do texto. O escritor deve sempre fazer a opção pela narrativa. Casos como o de Thomas Mann, em “A Montanha Mágica”, onde dois personagens, depois de interromperem a narrativa, gastam vinte páginas para um debate de idéias, é hoje inadmissível, mais, chega a ser um golpe baixo contra o leitor. Já não era o caso de Proust, cujas interrupções eram sempre em favor de novas instâncias narrativas.

Apesar dos fastigiosos diálogos em torno da mesa na hora das refeições, ou das discussões de salão.

Edição portuguesa 
       AB – Isso era moda da época, refletem os costumes de uma sociedade, e Proust praticava o chamado romance de tese. Mas ele nunca cortava o fio narrativo. (Mesmo nos jantares e nos salões, quando é evidente o debate de ideias, o narrador proustiano não perde de vista a ação, as características físicas e psicológicas dos personagens, seus conflitos, suas grandezas e mesquinharias, seus envolvimentos emocionais. O próprio desenrolar das cenas, no caso os costumes da sociedade francesa da época, era objeto de crítica narrativa. De fato, não se cortava o fio narrativo...) O escritor deve resolver a questão temática com a ação.

Deve procurar nela os motivos que reflitam sua postura. A vida de um deputado, por exemplo, com suas relações sociais, ou a amizade com determinados congressistas, é rica o suficiente para se fazer a crítica a um determinado sistema político. Não é necessário transcrever seus discursos ou teses políticas no interior da trama, a menos que um ou outro seja estritamente necessário. A propósito, até que ponto o escritor deve se ater aos fatos históricos?
Capa da L&PM

AB – O escritor tem a máxima liberdade em relação a eles. Deve ficar a seu critério quando e a maneira de utilizá-los. No meu caso, em “A Manhã Transfi-gurada”, há duas séries de fatos reais ocorridas com um intervalo de doze anos entre elas, mas, por questões de economia narrativa, utilizei-as como se tivessem ocorrido numa mesma época.

A tão festejada “licença poética”.

AB – Exato. É muito bom que na literatura as coisas ocorram assim.