sábado, 31 de agosto de 2013

Mínima do Dia - 8




As nossas verdades miúdas constituem o nosso credo... 








e são o que poderíamos chamar de nossa pequena religião do cotidiano.








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sábado, 24 de agosto de 2013

Pode ser que seja eu, pode ser que seja Deus

Morning Sun, 1952, Edward Hopper
      Ela está sozinha.
      Sentada na cama, pensa. Não faz mais que isso. Não há mais nada a fazer, o mundo está vazio e ela sabe disso. Não adianta gritar ou correr; nem partir os cristais. Ninguém virá. Os cristais estão em sua garganta. Sozinha, o tempo não existe, sua vida não existe. Passado, memória, cárcere. Avança, recua, voltas e voltas dentro dele. Mas não procura a saída, sabe que não há portas, apenas o muro. O inferno é ela mesma, o inútil batimento de seu coração. Já chorou tudo que tinha, já pediu o impossível, já gemeu baixinho. Já perdeu toda a esperança.

Excursão na Filosofia, 1959, Edward Hopper
      Eu estou sozinho.
      Da inutilidade de minha existência, do vazio ao redor, do nada além de mim tirei o que pude. Dei forma a tudo, criei espaços e tempos - criei vida. Mas não sei o que me criou, não sei meu fim nem o que sou. Sempre amei, mas não descobri a forma de me mostrar. Eu não tenho forma. Sempre encoberto. Criei todas para me encontrar e acabei perdido. Ninguém viu minha face real, me atribuem máscaras. Ergueram ídolos e totens; derrubaram ídolos e totens, mas nunca chegaram a mim. Tudo que criei sou eu mesmo; nem assim me reconhecem. Nem eu me reconheço. Talvez eu não tenha uma face real.

Verão Interior, 1909, Edward Hopper
      Ela está sozinha porque não acreditou em mim, em tudo que fiz para convencê-la de minha existência. Em cada coisa que tocou, procurou meu nome; na forma dos objetos, investigou minha imagem; provou os alimentos em busca do meu sangue. Cerquei-a, mas não adiantou. Gritei a cada toque seu, respondi a cada palavra sua. Através da luz, através dos pássaros, através de tudo à sua volta disse que a amava e que o seu destino era eu. Que o meu destino era ela. Porém não aconteceu, pensou que tudo mentia, que apenas a enganavam. Virou as costas para mim.
      Eu não tinha mais nada a fazer senão destruir o mundo. O problema é que destruí a mim também. Sou o mundo dela, mas ela não sabe. Dorme, pensando. Achou que amava, e que por isso não precisava de mim. Me esqueceria. Então, eliminei o primeiro a quem se entregou. Mas ela foi até outro e renovou seu amor. Destruí-o. E destruí também o terceiro, o quarto... - todos a quem ela se entregava. Mas como o seu destino era amar, a cada um eliminado, encontraria outro. 

      Então eliminei todos à volta dela para que cumprisse a sua sorte no único sobrevivente. Aquele que ainda a envolve, aquele sobre quem ela mantém os pés, aquele que ela bebe, come, respira - cospe. 
      Não adiantou. Ela não me ama, e como não pode cumprir o seu destino, sofre.


Quarto em Nova York, 1932, Edward Hopper

      Eu sofro. Sofro a falta desse amor que me daria vida, a forma exata, o meu destino - talvez um fim. Usei todas as coisas para convencê-la do meu sentimento. Me desfiz. Quero ajudá-la, mas não tenho braços nem pernas, não tenho voz com que chamar por ela, não tenho boca para beijar sua chaga. 

       Fiz tudo que podia. 
       Fui, sou o mundo todo só para ela. É pouco. Não tenho a maldita forma humana que ela busca para se consolar. Se eu (que eliminei todos à sua volta) aparecesse sob tal disfarce, ainda assim não me reconheceria. E quando por fim eu soprasse meu nome ao seu ouvido, sorriria - incrédula! Se sou, se faço tudo, me despreza. Se sou humano, não acredita.
      Hoje pela manhã bati à sua porta. Abriu, mas não viu nada além do vazio. Pensou que fosse ilusão e voltou-se para dentro. 

Quarto de Hotel, 1931, Edward Hopper
      Foi até a prateleira, tirou um livro e folhou-o. Fiz o seu olhar recair nestas linhas. Leu, mas imaginou fosse apenas literatura fantástica, que não tivesse nada a ver com ela nem comigo. 
      Mas não perdi a esperança, e quando ela preparar seu alimento, serei o amido. Quem sabe se assim, ao me esmagar entre os dentes, sua língua reconheça o meu sabor em sua boca, e ela afinal descubra que eu existo e vivo só para ela, para alimentar sua paixão, para curá-la de toda essa solidão.



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domingo, 18 de agosto de 2013

E Deus com isso?


A criação do homem, 1577, Michelangelo, detalhe


      Crente: Ele não precisa provar a existência de Deus, a simples presença de tudo no universo é prova mais que suficiente do milagre.

      Ateu: Ele não se preocupa com a existência de Deus, porque não há como provar a inexistência do que não existe.

      Agnóstico: Ele extrai sua força das duas fontes anteriores: os religiosos não comprovam a existência de Deus, e, por outro lado, os cientistas não têm como provar que Deus não existe.

      E eu com isso?


Detalhe Invertido... Ou: A Criação de Deus pelo Homem.




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quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Um romance por dentro


Em Os Hungareses, romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura de 2012, Suzana Montoro, através do registro de um movimento migratório provocado por uma ruptura social violenta, aborda a memória como a arte de pertencer (a um lugar) além do trauma.

“Acho que sou feita de memória
e o passado é o meu presente.”

Capa do livro. Editora: Ofício das palavras.
“No primeiro dia iugoslavo da aldeia, ao chegar à escola levei um tapa na mão quando disse o costumeiro bom-dia, já napot. Em húngaro não, ago-ra temos que falar em servo-croata, a professora sussur-rou em meu ouvido. Olhei atônita, o que eu podia dizer se não sabia falar coisa alguma na língua sérvia? Ao mudar-se de país, muda-se de idioma, ela ficou repetindo diante de nós, uma classe petrificada e muda. Era o mesmo que voltar para trás e começar tudo de novo, seja criança seja velho, todos iguais nos primórdios do novo idioma. Tínhamos de aprender a nos expressar na nova linguagem.” (pág. 20-21)
   



     “Os Hungareses”, como toda boa literatura deve fazer, desperta nossa sensibilidade para uma condição humana tocante. E não apenas pelo exótico, tão presente no romance de Suzana Montoro, mas também pelo tanto de humanidade assombrosa das situações mostradas. Lembram o que Pablo Neruda, ao se referir à realidade latino-americana, certa vez chamou de surrealismo concreto. O poeta chileno respondia à indagação sobre o motivo de os escritores do nosso continente não terem demonstrado grande interesse por aquele movimento. Segundo Neruda, por vivermos realidades absurdas, que sob muitos aspectos desafiam e até mesmo negam a própria lógica, esse estado de coisas por si só seria o suficiente para provocar a imaginação. Os defensores do realismo mágico acrescentariam, mais tarde, que antes de atender ao racionalismo ocidental, sua literatura refletia o modo maravilhoso como grandes parcelas das populações latino-americanas percebem o mundo.
    Pois esse mesmo espanto, ao registrar a dolorosa mudança da na-cionalidade húngara de “um vilarejo incrustado nos Bálcãs, na bacia do Danúbio”, também está aqui presente. Como diz a autora na nota final do livro, as histórias são “absolutamente originais e quase inverossímeis. Mais pareciam literatura do que a vida vivida.”  Não se trata de filiar o livro a esta ou àquela corrente, mas de identificar alguns dos princípios que informam e orientam boa parte do material a ser abordado de maneira literária. Antes de ser modo ou moda literária, o que não é o caso aqui, trata-se de uma visão de mundo. 
     Com o apoio do Programa de Ação Cultural, da SEC do Estado de São Paulo, o romance é fruto de entrevistas com moradores e descendentes de húngaros, no interior desse Estado, e de viagem da autora até a Hungria para viver melhor o que contava. A ambientação de grande parte do livro no Exterior é uma característica presente na atual literatura feita no Brasil, sobretudo nos novos autores, que sinaliza a abertura dos ficcionistas brasileiros para o que ocorre fora de nossas fronteiras. A diferença marcante, que no caso de "Os Hungareses" se constitui em mérito, é que, ao contrário de grande parte de seus congêneres, sua realização correu por iniciativa e conta da autora; não foi encomenda de editor nem recebeu patrocínio para render um filme, por exemplo.
      O livro ratifica as qualidades da autora reveladas em seus títulos para crianças e jovens. Um deles, “O Menino das Chuvas”, recebeu o selo de Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infanto-juvenil, com qualidades agora mais maduras e desenvolvidas. O controle dos períodos, a extensão adequada das frases e a uniformidade do conjunto asseguram bom ritmo para uma leitura segura e agradável. O leitor entra num túnel de voz e vive uma experiência única, e por que não dizer: mágica e sedutora. 
       A magia do próprio material está bem representada no tratamento, na sensação de que a autora encontrou o tom certo, nada é forçado, e isso também colabora para a leitura fruir com naturalidade. É a expansão de um talento despontado em seu livro de contos, “Exilados”, já insidiosos, econômicos, certeiros. O vocabulário, com todas as notas exóticas que pede a história, não sobrecarrega o leitor com informações desnecessárias. E que nomes! São tão reais e convincentes, tão bem ajustados ao conjunto, que dão mesmo a impressão de se tratar de uma história ocorrida em outro país, e noutra língua.
Suzana Montoro (jornal Rascunho)
     Suzana Montoro realizou a difícil tarefa de erguer, com notas “estrangeiras”, um mundo inteiramente novo para o leitor brasileiro, mas sem o choque experimentado pela mãe de uma das narradoras do livro, que, nascida húngara, de um dia para outro, “com a mesma naturalidade com que se acorda todas as manhãs, virou iugoslava”. Pois até quando a história se passa no interior de São Paulo, ficamos com a impressão de que continuamos respirando em terra estra-nha, e essa parece uma das grandes qualidades do livro, pois abre questões bastante instigantes para quem reflete sobre a literatura a partir de sua fonte e de seu alcance. 
      O estranhamento, a permanência dele embora a mudança do local, nos dá a ideia de que uma das personagens principais, se não a principal, é a linguagem. Mas sem as rupturas superlativas do experimentalismo de vanguarda. Ela, essa linguagem peculiar, a todo instante nos lembra que estamos diante do outro. Se por um lado dificulta a empatia com as demais personagens – por seu modo de ser estranho ao nosso -, por outro nos convida a observar e logo a nos entregarmos a esse novo conhecimento.

     “Éramos todos estrangeiros na própria terra, órfãos da língua materna. Não podíamos falar o que não sabíamos e não sabíamos falar o que podíamos.” 

       A fluidez da narrativa é também alcançada pelos diálogos intercalados à voz do narrador, sem marcação, mesmo procedimento adotado em sua novela juvenil “Nem eu nem outro”, num bom aproveitamento do coloquialismo. A cada vez que abrimos fortuitamente o livro, nos deparamos com uma frase rica de detalhes, uma narração enxuta, imagens e pensamentos de muita força. A autora, deixando de fora cenas e pontuações triviais, que apenas atravancariam a leitura, selecionou o que importa. Daí vem a força e o interesse crescente, a coisa anda, e nos deixamos levar por ela. 
       A abertura dos parágrafos, com novas ações ou mudanças de local, é mais um ponto alto no domínio da técnica narrativa demonstrado pela autora em seu primeiro romance. As passagens são tão bem feitas que nem sentimos o peso da viagem; ao contrário, somos instigados de trecho em trecho a saber o que acontecerá mais adiante, sem apelo a truques nem ao uso naturalista da trama. São qualidades de boa romancista, cujos exemplo maior é a expectativa criada no leitor em relação ao reaparecimento da Tia Rózsa. O desdobramento posterior da história no Brasil seria outro bom exemplo. Acompanhamos com interesse e curiosidade para ver como as coisas ocorrerão na nossa terra.
       A abertura da história também confere aspecto memorialista ao romance, ao assumir caráter rememorativo; a experiência se completa e se confirma no final. Grosso modo, dá para dizer que as duas pontas estão fincadas no Brasil, terra da narradora principal do livro, com grande parte do entrecho nos Bálcãs, terra de origem do ethos hungarês. Isso confere ao romance uma estrutura circular, mas com desaguadouro final num mundo novo, cuja figura emblemática é a da Tia Rózsa e seu ressurgimento, a sugerir uma nova volta do parafuso. 
      Rozália, a de “suave voz de passarinho”, é a personagem condutora de grande parte da história. Através dela o material “estrangeiro” vai sendo trazido para o tratamento dado pela narradora principal, que por sua vez aporta com as experiências do sítio brasileiro. Em torno dessas duas vozes, as demais personagens vão ganhando espaço, corpo e voz. A exemplo da linguagem, temos aí também outra personagem coletiva, como se “os hungareses” fossem na verdade uma única personagem. A princípio isso pode sugerir um reducionismo abstratizante, afinal as demais personagens estão bem caracterizadas, com suficientes atributos para a caracterização de vidas particulares.
    Apoiamos essa impressão, que não diminui, ao contrário amplia a compreensão do romance, num aspecto saliente em todo ele. A exemplo de algumas narrativas de Tchékhov e sobretudo de Katherine Mansfield, a atmosfera, no caso aqui o “modo de ser húngaro”, é algo bastante presente ao longo da história – como já o fora em seus contos a predileção pela ambiência –, a ponto de podermos afirmar que os caracteres individuais, manifestados nas mais variadas peripécias e experiências pessoais, são os motivos condutores da história, mas não isoladamente. Como se o romance fosse um conjunto sinfônico (o que na verdade é), as diferentes vozes contribuem, cada qual com seu timbre, para a composição total, e assim expressam o caráter maior. 
       O todo aqui são os hungareses e suas idiossincrasias, de tal modo expostos e explorados que diríamos que, além de investigar em torno de caracteres individuais, a autora foi através desses para estudar e compreender o modo de ser de uma comunidade. Podemos dizer que o objetivo final era mesmo nos mostrar a alma coletiva de um “povo” originado nos Bálcãs, o que aliás já está dado no título. 


Mapa da Hungria, com seu nome original, de grande repercussão no romance.


      A personagem que melhor simboliza tudo isso é a da Tia Rózsa. Como convém ao tratamento de um ethos coletivo, ela tem as características de uma personagem mítica. Solta na trama, pode aparecer em qualquer lugar e a qualquer momento. Está sempre chegando e partindo, ou seja, não tem o lugar fixo próprio de individualidades enraizadas, como os demais. Em relação a estes, ela está fora do tempo, é como se Tia Rózsa fosse o tempo que escoa imperceptivelmente, com a diferença de que ela permanece como portadora das características e destinos de todos. A confirmação disso é o fato de seu nome, como podemos ver no mapa acima, estar contido no nome do país em húngaro, na forma de anagrama. Fora da história, está sobretudo no início e no fim do romance feito marco, e o seu constante partir e chegar dá bem a ideia de ciclos de vida, num eterno recomeço. É o seu caráter mágico, também presente, numa sutil e feliz coincidência com o português, no início do nome pátrio. 
"Um Passaporte Húngaro" (2002), de Sandra Kogut
(Material de divulgação do filme)
    Por outro lado, ela também simboliza o desenraizamento pró-prio de quem perdeu a nacionali-dade e mergulhou no silêncio – assunto subjacente do romance –, portadora de uma agonia impossível de compartilhar com quem não seja seu igual. Lembra a Santa Louca da infância, que alguns leitores talvez compartilhem, em especial os que viveram no interior do país, mulher sem origem e sem paradeiro, que assim como aparecia na porta de casa com uma lata de leite Ninho para pedir comida, sumia sem que soubéssemos para onde nem quando retornaria. 
    Emblemática, Tia Rózsa é a condutora desse ethos desterritorializado, sujeito sem local próprio para fixar sua raiz. Transeunte da memória, procura no mundo o estuário onde desaguar, ente universal e semelhante a todos os seres humanos. O seu modo de ser húngaro, a realização particular da potencialidade humana, só pode desaguar na única dimensão capaz de recolher e fixar sua humanidade: a linguagem. É o trabalho da caçula narradora, a fiadora da costura que, para além do tempo e do espaço social e histórico, registra a voz dos que não têm voz, sobretudo dos que perderam a voz em meio ao trânsito. Assim, elas se complementam, verso e reverso da mesma moeda, portadoras da memória da aldeia, no caso dos hungareses de lá, e do sítio, no caso dos hungareses de cá.
     Quanto às vozes narrativas, mãe e filha desempenham o papel de facilitadoras para a trans-missão da experiência, marcando aí mais um espelhamento, uma complementando a outra. A voz da mãe, em muitos trechos, lembra os narradores das novelas infantis da autora, em especial “Em Busca da Sombra”. Aliás, aqui também surge a questão da identidade relacionada à posição do outro. É possível traçar um paralelo com “A pele que habito”, de Almodóvar (que abordou essa questão expandindo-a para o gênero e a sexualidade).
      A condição angustiante dos hungareses talvez resida no seu isolamento, tanto na aldeia como no sítio, a falta do outro em quem se espelhar e se reconhecer, sobretudo na afirmação das diferenças, sem que esse outro seja a negação da própria cultura. É o conflito angustiante dos exilados, pois correm o risco de, mais dia menos dia, naufragar na assimilação, enquanto lutam para afirmar, no outro, a marca de sua diferença. Resta, como numa frase do personagem de Almodóvar no cárcere, agarrar-se à auto-expressão, pois “la arte es garantia de salud”. 
      Voltando ao romance, às vezes fica-se com a ligeira impressão de que, em certos momentos, as vozes soam indiferenciadas, como se traíssem um mesmo sujeito de enunciação. Esse desafio, fazer as vozes falarem com dicção própria, marcadamente diferentes uma da outra, é a maior dificuldade quando o autor trabalha com mais de um narrador. Talvez essa impressão se deva por elas, as vozes, estarem muito próximas, por ocuparem o mesmo espaço/tempo narrativo, ou melhor, olharem o material de um mesmo ponto de vista. Talvez se as vozes conflitassem ao abordarem um mesmo assunto, ou se se referissem a assuntos bem distintos, com colorido próprio, talvez ficasse mais clara sua alteridade. 
      Mas apesar disso, e de alguns cochilos da revisão, “Os Hungareses” é expressão pura de inteligência intuitiva, desde as primeiras linhas nos sentimos em companhia de boas mãos. Nos entregamos já na largada, sem travar nem temer passo em falso durante a leitura, o que atesta a firmeza da abordagem dos assuntos pela autora. Aliás, transbordam sabedoria e clareza existencial em toda a narrativa. Somos brindados a cada página com belas frases, como a que vai de epígrafe neste texto. Vale a pena ampliar a citação:

      “Até hoje, quando busco pelas lembranças da minha aldeia, é a paisagem desses dias que me chega num silêncio fresco de quem acabou de acordar. E me vejo em meio a essa paisagem como se nunca tivesse saído de lá. Acho que sou feita de memória e o passado é o meu presente.”

      Há em todo o romance a solidão de um mundo sem Deus, criaturas abandonadas muitas vezes a um destino cruel, sem misericórdia. A maldade fria da avó torta é também emblemática, soa como um rito de passagem para um mundo adulto sem esperança. Nesse sentido, o livro chega a ser desolador, a pungente condição das personagens em certos trechos nos enche de tristeza, como se soubéssemos a todo instante que o destino final seria o mergulho no fundo da piscina. Mas aí entra Tia Rózsa que, a exemplo da mãe, dá alguma estabilidade à sobrinha neta, ao menos a clarividência de antecipar algumas consequências dos atos, o que já é um grande passo para a maturidade e a superação do trauma. 

Foto de Madalena Schwartz (1921-1993), fotógrafa húngara,
que curtia o teatro underground de São Paulo 

      O destino no teatro será a resposta individual da narradora a essa alma torturada e livre de todos nós, hungareses. Embora saibamos que, no conjunto, a alma estrangeira será em parte assimilada no silêncio da agonia, ficamos gratos e até um pouco felizes ao perceber que, como diria Drummond, de tudo afinal fica um pouco. No caso aqui, não foi pouco, foi uma ponte destinada a ligar os dois pontos da linha cortada pelo Atlântico. Nesse sentido, a viagem da narradora à terra de seus ancestrais é a garantia da saúde, o religamento, a re-união de uma comunidade seccionada por um mundo/mito sem Deus. Tomara chegue esse dia, quando os irmãos de lá reconhecerão os irmãos do lado de cá, trabalho possível também e sobretudo por uma boa tradução.
      Embora a pungência desses destinos, não há como não ficar impactado com situações muitas vezes hilárias, bizarras, totalmente fora da casinha. Que gente, que situações, e que humanidade! E que lance o de Suzana Montoro ao recriar todo esse universo, ao dar, a uma existência que esse tempo velhaco imaginava engolir sem deixar traços, uma expressividade vivaz, cheia de talento, técnica e sabedoria. 
      É a vitória da memória sobre o tempo. 
      E isso tudo num primeiro romance. 
    Para arrematar, cito as palavras finais da nota da autora, referida logo no início da resenha: 

      “Os nomes estão trocados, as histórias são inventadas, mas quem viveu no sítio ou conviveu com elas sabe que é tudo verdade.”









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quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Mínima do Dia - 7



Alguma coisa sempre dava errado, ele não sabia o quê.
Era a décima vez que tentava a construção da casa. Em vão, pois nunca conseguia levantar as paredes.
"Por que", dizia a si mesmo, "por que dá tudo errado, se começo a casa sempre pelo telhado?"

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terça-feira, 13 de agosto de 2013

Vivemos numa Grande Província


Quem é quem na nação?
      Se dizemos que o Brasil, para a contagem da idade das civilizações, nasceu ontem, então devemos concluir que deixamos o campo há poucas horas, talvez minutos.
      Diante dessas crianças, sempre nos vem à mente a palavra mais cara (ao menos para os governos): educação. Aí também nos infernizam os lugares comuns: a educação vem de casa, é transmitida com o leite materno. Não por outra razão, ainda ouvimos dizer ou lemos (com frequência bem menor, é verdade), que a família é a cellula mater da sociedade. Em miúdos: o adulto, segundo alguns psicólogos, carrega vida afora o seu berço da infância, em especial quando os obstáculos do mundo provocam seus sentimentos mais atávicos. Ainda que sejamos menos deterministas (o que parece ser cada vez mais contra-corrente), ou totalmente liberais (a corrente cada vez mais aberta, fechada...), seja qual for o nosso centro ou nosso extremo, ainda assim concordamos com mais um lugar comum: a criança é o pai do homem.
      Superado o parágrafo dos lugares-comuns (pois esse não é o nosso assunto), ao olharmos as obras desse jovem mancebo tecno-eletrônico, somos obrigados a concordar que, por vias aéreas, ou seja: a razão, o portuga-americano evoluiu bastante, dentro das lições industriais e financeiras do mundo ocidental. Na infra-estrutura, com grande rapidez ao longo dos últimos 80 anos, os progressos dos filhos dessa mãe gentil (descontados os gargalos das cidades, das estradas, dos aeroportos, etc., afinal uma maneira de comprovar, pelo viés dos otimistas, o sucesso desenvolvimentista do modelo econômico), são visíveis a olho nu e respiráveis a narinas carbônicas. Deixemos os outros sentidos em paz! Bem, já que não conseguimos superar os lugares-comuns, concluamos este parágrafo com mais um: o colono adulto implementou e desenvolve muito bem a cartilha do chamado (pelos inimigos do modelo, claro!) capitalismo selvagem.
      Mas se o desenvolvimento material e econômico da nação foi notável nesses anos todos (só para lembrar: algumas estatísticas tradicionais, baseadas em índices financeiros e econômicos, apontavam o Brasil do século passado como o país que mais se desenvolveu no mundo), se nesse campo, ops!, se nesse meio urbano e adjacências o desenvolvimento do país foi notável, no outro terreno das vias aéreas, ou no outro hemisfério do cérebro, onde se situa a mentalidade do ser humano (criando aqui uma original separação entre mente e razão!), nessa área, devemos concordar, o Brasil tem avançado a passo de cágado. O responsável, como devem ter percebido os alunos mais espertos da turma, é esse adulto que, ainda hoje, no finalzinho da manhã ou no início da tarde, deixou o campo e migrou para a cidade.
      Mas afinal quem é esse adulto? O que pensa ele? Podemos dizer que ainda é uma criançola?
Elite migratória predadora
   Estamos falando dos filhos, netos e, em alguns casos, já dos bisnetos dos homens e mulheres que comandavam e sofriam aquele antigo Brasil. Esses avós, juntamente com os pais fundadores da nação (portanto avós desses e bisavós e tetravós daqueles), foram os criadores, trabalhadores e vítimas de uma sociedade estamental, escravagista e predatória, que por séculos explorou sem dó nem piedade os potenciais naturais e humanos do grande e vasto território. Exterminaram índios a bala (hoje botam fogo nos que sobraram, deve ser porque é mais barato!), ferraram e montaram negros escravos como se fossem bestas de carga, constituíram-se em coronéis da terra para controlar a mão-de-obra e o voto, tudo na velha tradição patriarcal e bastante cristã, alicerçada no mandonismo de quem pode e no obedecismo de quem precisa. (Não confundir com obedeceísmo, que é o movimento de apoio de certas categorias em torno do poder.) E para que ninguém sinta falta dos lugares-comuns: era o governo elitista de oligarquias autoritárias.
      Isso até hoje de manhã.
      Se o nosso silogismo está correto... Recapitulando: aplicamos os conceitos da psicologia do indivíduo na constituição e desenvolvimento da nação (método bastante novo e original!) e obtivemos como resultado a mentalidade quatrocentona de uma civilização exploratória do homem pelo homem. Não vamos dizer que o homem é o lobo do homem, para evitar mais um lugar-comum e em respeito aos lobos, e sobretudo às mulheres, afinal elas hoje também estão no comando dessa cultura canibalesca à nossa volta.
Os Empalhaços produzidos pela política do país
      Bingo!: podemos então afirmar, sem sombra de dúvida, que o Brasil ainda é um país interiorano, na pior acepção da palavra (essa modulação criminal é de suma importância!), em sua formação e estruturação psicológica. Ou seja, a sombra agrária e estamental ainda está presente na mentalidade nossa e de nossos dirigentes, ou, o substrato mental, o espírito primitivo da nação (como já perceberam os melhores alunos da classe), de certa forma (mas de uma forma dialética, portanto) é a grande força que ainda preside a nossa realidade política, econômica, social, etc; ou numa só palavra: cultural.
      A conclusão do silogismo só pode ser uma (não, não falarei em revolução nem em banho de sangue): vivemos numa Grande Província!




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quinta-feira, 8 de agosto de 2013



O Milagre humano da Arte



Hieronymus Bosch
    


    Existe um ponto de fusão entre a realidade mais dura e a imaginação, e é aí, nesse núcleo dúctil e selvagem, 
-inspiração da vida mais livre-
    onde ocorre a magia da Arte







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quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Questão de Mérito

fragmento de Diário de um fracassado,
que integra o romance Pedro em queda



A Guerra de Gigantes que faz tremer a terra




      Embora tudo vá se acabar numa quarta-feira de cinzas, nunca é tarde para pensarmos no dia de amanhã. E pensar que os mamutes são descendentes, segundo tudo indica, de um animal que regulava em tamanho com uma anta!, o Moeritherium.



*


      Os meriterióides constituem uma subordem de proboscídeos do Terciário inferior.

      Segundo um ministro brasileiro, a nossa subordem (um eufemismo para sub-raça) periga empurrar o país para o Quartenário inferior. Ainda segundo o ministro, para escaparmos do Terciário, precisaríamos alimentar nossos meriterióides à base de saracuras. 
      O problema é que, nas ordens do governo, esse recado tem sido historicamente mal interpretado, tendo-se distribuído, às antas, sinecuras como nunca visto. 
      Nossas antas andam gordas paca, e não há jeito de o Brasil ascender ao Primário superior.
      Talvez o ministro não soubesse, mas quem nasce para anta, nunca chega a meritério.



                                                              Anta inofensiva


*


     Não é coisa fácil avaliar a probiscidade de uma estratégia.
     A Inglaterra, por exemplo, viu no Brasil, na Argentina e no Uruguai, aliados legítimos para sufocar a nascente República Guarani. O Mammuthus imperialis achou de bom alvitre retalhar o meritério americano, para a garantia de seu mercado externo. É a tese a ser derrubada feito um patinho de parque de diversões.
     


*


     O mamute foi um dia meritério. Para chegar a tanto, enquadrou-se na linha de aumento de porte, que constituiu uma tendência evolutiva importante entre os elefantes fósseis. Mas antes de conquistar esse garbo todo, supõe-se que foi um organismo adaptada à vida anfíbia, habitando as zonas úmidas ou pantanosas nas margens dos rios.
     Enquanto esteve na margem, o meritério, sem dúvida, sonhou com o seu futuro de mamute.
     Mas e o mamute, por que esquece tão rapidamente o seu passado meritério? Não haverá nele suficiente probiscídeo?



*


     Meritério, o país do futuro!



*


     Nosso futuro, afinal, está nos mamutes ou nas pacas?


                                                                  Feliz Paca


*


      Mamute: ame-o, ou deixe-o!


                                                         Isto não é um mamute


*


Consolo de paca: toda paca tem o seu dia de anta.



*


O Ibama adverte: as espécies acima não se encontram na natureza.



*


                              Identifique, na figura acima, de que espécie o texto tratou.








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sábado, 3 de agosto de 2013

Mínima do Dia - 6


"A Tristeza do Rei" (1952), Henri Matisse
"A Alegria de Viver" (1905-6), Henri Matisse
         


A consciência crescente
do nosso desaparecimento,

e a da não existência de uma eternidade

possível para o nosso eu,

acelera e muito a extinção, as mutações 
e a criação de novas formas.


(Era mais fácil conservar as antigas formas, quando havia a crença de que éramos sempre os mesmos, e nos parecia garantida a permanência da identidade pelo tempo afora.) 











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Mínima do dia -5


Sem título (1993), Arcangelo Ianelli




Metalinguagem

 As palavras
para o poeta 
são 
as cores 
para o pintor









*


"Os Três Músicos", (1921), Picasso
E as vogais,
 para os cantores. 


Pois o que seria
dos madrigais


se não fossem 
as vogais?


*


"Composição suprematista: Branco sobre Branco", (1918)
Kazimir Malevich


Meta-
poesia 
é 
pintar 
em 
preto 

branco.









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Carpe diem

No tapete: "O Beijo", (1907-8), Kustav Klimt

   Não fossem inúteis os conselhos, poderíamos, inspirados em Horácio, dizer:


     Goza o dia
     entre os ramos do jardim,
      não demora cai a noite
     e as flores
     serão colhidas por mãos murchas

Horácio


     Poderíamos tentar outra construção:


     Goza o dia
     entre os galhos do jardim,
     pois a noite não demora.

     E o que será das flores
     colhidas pelas mãos murchas?



     Ou quem sabe:


     Goza o dia
     entre as folhas do jardim,
     pois a noite se avizinha.

     E o que será das mãos 
     murchas, 
carregadas de flores?

Safo

     Ou ainda:


     Goza o dia
     pelos frutos do jardim
              
     - a noite já sibila!

     e flores serão
     os brotos das mãos murchas.


   E ainda assim não seria uma solução, 
pois continuamos a ignorar 

as palavras dos poetas.


A procissão das bacantes
















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