quarta-feira, 24 de julho de 2013

O Olho

fragmento do romance 
O Deserto das Ilusões




     

      Ao cruzar o galpão de uma fazenda onde o pai contador, em visita a um dos grandes exploradores da re-gião, foi colher os números do arroz e da pecuária, Isaías viu-se diante de uma cabeça de ovelha num varal. Pendurada no gancho, ela o olhava fixamente como se indagasse, ou mais, como se o acusasse por sua atual condição. Parecia haver nesse olhar já embaciado uma espécie de dolorosa resignação, como se ele, o animal, lamentasse tarde demais a confiança depositada em seus cuidadores. Enxameada de moscas, ainda gotejava demorados e grossos pingos de sangue. No chão se formara uma pequena poça, onde em seguida chegou um cão ovelheiro para beber.
      Isaías desviou o olhar, mas acabou dirigindo-o para o pequeno monte de lãs próximo à saída do galpão. O comum era o pelego da ovelha sacrificada ficar ao sol, coreando, mas por um motivo qualquer ela tinha sido tosquiada antes. O pai, o avô, um peão, às vezes lhe contavam histórias ou comentavam algum fato estranho ao andar por perto. Agora, quando procurava fugir ao olhar fixo do animal, as narrativas se enredavam na memória. A lã, tramada nos teares, recebia tintas e depois era transformada em blusões, ponchos e cobertores pesados. Num tempo lá atrás, em outros campos ou vales, pequenos rolos de fios como esses viravam pavios de antigas lamparinas, e embebidos na gordura do próprio animal formavam velas para iluminar a noite das famílias, talvez cavernas profundas onde pudessem também se esconder os monstros. Ah, o assadinho de cordeiro... Nunca podia faltar em dia de festa, e durante a semana era preparado na forma de costeletas com arroz, ou cozinhado com massa.
      Olhou mais uma vez a cabeça. O que tinha diante de si era apenas uma etapa desse processo. Ele, assim como os outros, passado o primeiro susto da infância diante do sacrifício de uma rês, também já se acostumara a ver essas partes como produtos. Se alguém se mostrasse horrorizado com o desespero do animal na hora bárbara e solene, não faltava quem dissesse: isso é a vida, uns morrem para outros viverem, é a lei mais certa da natureza.
      Na primeira vez, e agora, quando olhava fixamente o olho já sem brilho do animal, pensou que isso não estava certo. Tinha aí no mínimo um grande equívoco, não era correto toda essa criação para o abatimento em massa, sem outro critério que não fosse a permanência da espécie. Deus, e o homem em seu lugar, deviam buscar um novo caminho para a sobrevivência. O que queriam provar? Qual a necessidade de tamanho sacrifício? O homem, para encher o bucho e os bolsos; e para abrigar-se do inverno não precisaria matar. Mas Deus, qual a sua necessidade, o que precisava provar com o inesgotável morticínio em sua perene marcha, que não pudesse ser melhor demonstrado pelo amor, a generosidade, o perdão? Que eram capazes de criar, isso já estava suficientemente comprovado, em especial através da beleza e de todo êxtase por ela provocado. Então qual a precisão do extermínio? Não conseguiam se colocar no lugar do outro, seria só isso? Era assim tão contundente o fio da própria faca, para não a experimentarem na própria carne? Não veriam isso?
      O cão ovelheiro, sorvida a poça de sangue até o fim, deixou o galpão num passo indiferente e rumou para os campos.
      No outro varal - as costelas arfando em silêncio - repousava o corpo esquartejado. Num impulso, Isaías pediu ao capataz a faca emprestada, era para extrair um dos olhos da cabeça. Não tinha muito claro o que procurava, quando começou a fustigar por atrás do olho embaciado. Depois de alguma luta, cuidando sempre para não machucar o órgão do animal - não sabia que ele era fixado tão firmemente ao fundo da cova -, afinal o extraiu. Em seguida, amparava na palma da mão uma rara bolita, como nunca tivera, como nunca imaginara outra igual na infância.
      Ainda seguindo o mesmo impulso, cortou o olho na transversal. Escorreu em suas mãos um líquido puríssimo jamais visto nem tocado por ele, um fluido sequer intuído, mais brilhante do que a vaselina e mais fresco e transparente do que a água mais cristalina. Não podia imaginar que houvesse no mundo tamanha pureza! Era uma não-matéria, a transparência que deixava ver e até mesmo aclarava ainda mais o outro lado, sua palma da mão mais viva e aberta. Nela, vertia um coágulo de tempo - a concentração da metafísica!, pensava só agora ao relembrar -, todo o fruir da existência animal em sua pele, a escorrer por seus dedos. Depois da sutil massa incolor, que tinha um cheiro de peixe que ficou impregnado nas mãos durante dias, vinha um círculo oval acinzentado, claro e consistente: a pupila, colada contra a córnea no centro da íris...
      Teve novo impulso. Juntou o seu ao olho do animal, e viu que o outro também captava o mundo de cabeça para baixo, um mundo invertido, que só mesmo a severa lei da retina corrigia. Ao apertar tal globo, o pequeno globo oblongo dentro do líquido vítreo, o invólucro se partiu, e do seu interior irrompeu uma nova massa brilhante, agora mais espessa, com minúsculos pontos coloridos, de tal modo que ele tinha na palma da mão, em miniatura, uma espécie de arco-íris aos fragmentos. Seria o filtro das cores? Era um gel quase translúcido, semelhante às pomadas homeopáticas, que se desfazia com a pressão renovada dos dedos. Até que perdeu por completo a forma original e se transformou numa massa pastosa - todo o mistério do olhar animal agora desfeito em suas mãos.
      Olhou outra vez a cabeça da ovelha. Que prodígio! Como podia essa matéria ter sido criada e ficado esse tempo todo escondida do mundo? Quantos como ele, fosse pelo trabalho, pela educação ou até mesmo pelo acaso, como lhe parecia o seu próprio instante, tinham alcançado o fundo do olho do animal, essa cova, essa caverna milenar onde Deus parecia teimar em se esconder, lançando apenas sombras sobre tudo em volta?...
      Estava nisso, quando ouviu a voz do capataz às suas costas, num tom divertido e aflautado:
      - Isso aí assado na brasa... Hum!... É uma iguaria!