sexta-feira, 19 de julho de 2013

A Pele Que (Não) Habito

Gênero, identidade e transgressão


Num mundo em que a evolução técnica já é capaz de trocar até o rosto das pessoas, sem no entanto lhes dar uma nova identidade, como fica o (auto) reconhecimento do sujeito?
Essa inquietante questão também está colocada no mais recente Almodóvar, “A pele que habito”. Não tem a mesma vibração de cores nem as tiradas espirituosas de filmes anteriores do autor. Ao contrário, dessa vez o cineasta espanhol nos mostra interiores e roupas de cores sóbrias, e, quando a luz reluz, tem a frieza asséptica de uma sala de cirurgia.
Tudo a ver com o assunto: cirurgião plástico, Robert pesquisa em busca de nova pele para a mulher, que sobreviveu a acidente de automóvel quando fugia dele... Entre a vida e a morte, o corpo transfigurado pelo fogo, ela fica aos cuidados do médico-marido. Mas um incidente terrível, provocado de modo involuntário pela filha do casal, elimina qualquer possibilidade de êxito para a busca do marido. Essa face do trágico tem origem na candura. Quem se ergue e vai atrás dela, não suporta sua auto-imagem refletida. Diante do grotesco, a queda. Anos mais tarde, a menina será vítima de um novo golpe brutal, dando ao médico a inesperada oportunidade de resgatar a mulher perdida.
Entre avanços e recuos no tempo, o filme apresenta uma galeria de personagens transgressoras. Insatisfeitos com a própria vida, cada qual transgride à sua maneira. Robert trabalha para uma gangue que fatura com a troca de rosto de criminosos, mas o seu lance mais ousado, e motivo condutor do filme, foi praticar com as próprias mãos um ato de vingança, ao sequestrar o causador de grande mal à filha. No caminho da vendeta, em algum momento, ele vislumbra a possibilidade de retomar sua procura original.
À semelhança de Montresor em “O Barril de Amontillado”, de Poe, o médico manterá sua vítima a ferros em caverna particular, enquanto destila o insano plano de busca. Aqui talvez há referência “invertida” ao mito de Orfeu, que foi ao mundo dos mortos resgatar sua fiel Eurídice (esta também se acidentou, com a picada da cobra, mas quando fugia ao seu perseguidor Aristeu). Em sua busca por uma pele nova e “resistente” para a mulher, Robert não hesita em violar o código que proibia a transgenia aplicada a seres humanos. É advertido por um membro da comunidade científica, mas vai adiante.

Já Vincent precisa, a cada semana, dar uma escapada para praticar seus atos transgressivos, chamados de “taras” a  certo trecho do filme. Lembra o personagem sem nome de “Passeio Noturno I”, de Rubem Fonseca, que para se desafogar dos dias terríveis na companhia, saía à noite para caçar suas vítimas, independente se fossem homens ou mulheres. Zeca, criado numa favela da Bahia (Salvador), a exemplo de Fortunato no conto de Poe, aparecerá na vida de Robert em meio ao Carnaval (período de suspensão de certas normas de conduta), ele também com um passado de crimes. Cada uma infeliz ao seu modo, as três personagens têm em comum o desconhecimento da própria origem.
E por aqui entra um assunto caro a Almodóvar: a figura masculina. A trinca é filha de pais ausentes, que não participaram de sua educação afetiva. Como em outros de seus filmes, aflora a imagem do macho autoritário e fornicador, o animal procriador que não cria, não cuida, não educa. E que no extremo de seu lado monstro, será capaz de barbaridades invasivas contra o outro, em atos repulsivos como o estupro. No egoísmo do mundo para mim, Robert e os outros não reconhecem a vontade de quem está diante deles, a não ser como espelho de suas próprias vontades. Parecem dizer que o outro não tem rosto, que a pele que habitam é e será apenas a fornecida pelo eu mesmo. Eles mesmos retratos de uma sociedade sem rosto.



Almodóvar evita a simplicidade dos opostos, suas figuras femininas importantes também não recebem olhares condescendentes.  A certa altura, Marília (Maria?) afirma que a loucura dos filhos foi gerada no seu próprio útero. Talvez  aí, em se tratando de transgenia, mudança de corpo, de pele e de sexo, há um traço de determinismo no filme, ao eliminar as forças do ambiente como também causadora de nossos males. A responsabilização do indivíduo, no caso aqui a figura feminina, eximiria a vida social de responsabilidade por nossos graves desvios. Porém, o mesmo poderia ser dito por uma personagem masculina, afinal a loucura instalada no útero de Marília teve participação do pai. Se pensarmos numa Espanha católica fervorosa, a interpretação pediria muito mais espaço.
Mas tal hipótese entra em conflito dentro do próprio filme. Pois há nele outra vítima, considerando todos os transgressores como também vítimas de suas origens e meios. Essa vítima é a filha do casal. Nossa visão até aqui parece confirmada no nome dado a essa personagem. Além do trauma pela perda violenta da mãe, que a colocará sob acompanhamento médico o restante da vida, ela sofrerá a violência que desencadeará a vingança e a busca do pai por sua Nova Eurídice.


O tecido frágil da menina, sua condição emocional pós-trauma, simbolicamente a pele que habita, é rompido por um ato unilateral de vontade. Diante dessa violência, logo associada à figura do pai, ela perde a confiança numa vida estável e justa, acelerando o seu desligamento do mundo. Momentos antes de ser mais uma vez vitimada, joga longe os sapatos de tacos altos (renúncia ao seu caminho) e logo o casaco rosa (a pele social), dando vivos sinais de que ela mesma não suportava mais a prisão da própria vida, sustentada de maneira artificial por químicas anestésicas.
O seu nome é Norma.
Nesse Frankenstein de Almodóvar, em que o criador sucumbe à sua própria criatura, em que aquele que traz a cura (o médico) habita o mesmo corpo daquele que transgride a norma (o monstro), parece não haver salvação para ninguém. É quem sabe o filme mais niilista do diretor, até aqui. Robert, ao se apaixonar por sua vítima, inverte a síndrome de Estocolmo (nome originado do assalto com sequestro próximo à praça Norrmalmstorg, no centro daquela cidade), mas nem isso o salva. 


A Bela, para fugir de seu cativeiro, não renuncia ao cometimento de novos crimes. O contato com a arte, a ioga, a leitura de Alice Munro, nada elimina o germe da maldade em seu tempo de prisioneira. Felicidade demais, no caso da agora bela vítima, é aguardar pelo tempo da vingança, tempo em que ela mesma será a Fera. Para isso, basta um erro de seu algoz.
O erro de Robert, como dos demais (como o de nós outros quando incorremos na mesma cegueira) foi não reconhecer nem a si nem ao outro. Não faz investigações para saber os motivos da traição da mulher, não supõe que ele mesmo é parte da resposta, talvez a maior, a porção mais significativa da causa de sua própria desgraça. Desconhece a si mesmo, pois não sabe que não é filho dos Legrand (os Grandes?), e vítima de sua própria cegueira, Robert-Édipo busca estabelecer unilateralmente a identidade do outro, sem perceber que sua própria identidade, seu conhecimento de si, depende sobretudo do outro, e qualquer imagem que resulte disso só pode ser tecida na e com a relação dos sujeitos, nunca no eu sozinho, na loucura precária de fazer do outro minha imagem e semelhança.

Uma das vítimas dessa cegueira (de atribuir a identidade via mão única) é o transgressor de Norma. Ele não tem opção, seu novo estado é estabelecido de fora, sem o seu consentimento. Vítima da forma mais cruel de determinismo, seu castigo será habitar um corpo estranhado, não mais o seu antigo corpo. Destino fatal, sem escolha, sem volta. Numa condição semelhante à de sua vítima, sua marca de nascença será sofrer o mesmo mal cometido contra Norma.
Aí está o grande desafio lançado por Almodóvar. Em princípio, em a pele que habito, não muda o sujeito, apenas o seu lugar. Parente do/a Diadorim de Guimarães Rosa e de o/a Orlando, de Virgínia Woolf, a personagem em questão, depois da mudança radical de estado, ainda permanece ligada ao seu conteúdo anímico, ao seu todo espiritual e afetivo. A sua memória, até essa nova condição, é de determinado gênero, ligada a determinado sexo. Porém, a nova condição (o novo corpo, a pele nova) pede uma nova mente.
Fruto do que Ortega y Gasset, filósofo conterrâneo de Almodóvar, chamaria de “ele e a sua circunstância”, esse homem, num único golpe, teve mudados os dois termos da expressão. Nem homem nem mulher, nem macho nem fêmea, o novo fruto, ou a Eurídice invertida, é um híbrido infértil. Violentado, jogado num caminho e numa pele não escolhida por ele, mas determinada por outro (de fora, já dissemos) com a sua participação (afinal seu estado atual é também motivado por suas escolhas passadas), ele agora é de outro gênero. Misto homem-mulher, gênero estéril, é incapaz de descendência. Nesses termos, como fazer para se reconhecer e ser reconhecido? Como alcançar a fecundidade?
A personagem, com a mudança de sua condição, deverá criar novas relações com o mundo para se desenvolver. Isso é tão inevitável, como dependerá do sucesso dessa busca sua sobrevivência, para que não entre em colapso como a antiga norma. Por escolha de outro, não será mulher completa nem homem completo, de acordo com os padrões anteriores ao seu estado atual, mas que ainda presidem o seu novo nascimento. O desejo de plenitude permanece vivo.


Mas o seu problema tem o tamanho do mundo, afinal este não mudou. A sua reeducação deverá se dar no mesmo ambiente, lato sensu, em que cometia e ainda comete suas transgressões. Portanto, sem ilusão. Já que não pode mudar o mundo, e sua condição foi alterada sem opção sua, deverá buscar nos outros (e em possíveis semelhantes) o seu novo modo de ser, para que a nova pele que habita, no corpo estranhado, não seja novo cativeiro. O seu castigo, que é ter de viver sob a pele de agora, é também a porta de saída para sua libertação. Mito moderno, Orfeu de si mesmo, para não se perder outra vez, deverá olhar para trás e aprender com o passado. Se quiser avançar até a saída do inferno, precisará reconhecer seus próprios erros.
Norma (a filha) seguiu o caminho da mãe (Gal), o caminho que a personagem em questão cruzou para sofrer seu novo estado. A mãe já sucumbira diante da própria imagem, fruto de sua própria transgressão. Mas é também, ironicamente, o caminho de Norma que garante o fluxo de ida e volta no mundo, o caminho transgredido, de mão dupla, o caminho que deverá ser modificado pela personagem através de novas relações. Ela também sucumbirá?



Esse novo gênero traz, como sinal de seu nascimento, a mesma ambivalência que marca os demais gêneros. Daí talvez o tom soturno do filme, mostrado de forma emblemática ao seu final, quando o portador do novo gênero se apresenta com o nome de sua antiga identidade. Por isso, soa patético quando ele diz “Eu sou...”, e todos nós sabemos que ele já não é mais. A questão agora é se ele, nessa nova chance, será feliz em sua redescoberta. Com a nova educação, afinal erradicará de si o mal de que é sujeito e também vítima, que o atinge de dentro e de fora? Se a serpente que picou a Antiga Eurídice já estava no útero, ou se estava fora dele o tempo todo, nunca saberá, porque nunca saberá afinal como ela foi parar aí, quem ou o que a soltou em seu caminho. E frutificou. Os cristãos da Nova Espanha apenas desconfiam.
Mas, para não sufocar o espectador, Almodóvar, de maneira sutil, abre uma porta tão grande quanto a que fechou diante de nossos olhos. A personagem, com uma jaqueta vermelha brilhante (não mais o rosa de normas e regras adolescentes), deixa antever que a reeducação dependerá sobretudo dela mesma. Apoiada na sociedade sem rosto, deverá aprender a dura lição do auto-conhecimento e do conhecimento do outro. A nova vida começa quando o filme termina. Sem ilusões, será um árduo aprendizado. É triste e doloroso, mas sobretudo desafiador. Estamos tão impactados com o destino final da personagem, que não vemos aí um novo começo, e mais, demoramos a perceber que a nova condição deverá trazer também novas compensações. Se já não é o novo rosto da ilusão.
Quando as luzes se acendem, o filme continua em nossa mente. Ou melhor, temos a impressão de que estamos despertando numa sala de cirurgia do tamanho do mundo. “Eu sou...”
A resposta fica a cargo de cada um de nós. E de todos os outros.